O Pensamento Mecânico

Leopoldo Jereissati
Fala Man
Published in
4 min readMar 20, 2021

se bobearmos a vida passa no piloto automático.

Dia qualquer da semana, abro o Whatsapp e vejo dezenas de mensagens em grupos quais participo sem mais saber ao certo o porquê. “Parabéns Fulano! Que seu dia seja maravilhoso, cheio de luz, saúde e paz. Aproveita seu dia (e uns emojis tipo palmas e bolo)”. Alguns minutos depois essa mesma mensagem é copiada pelos membros do grupo e replicada ipsis litteris em sequência por mais de 80% deles. O que estamos fazendo (eu incluso)? Nos livrando do fardo de socialmente ter que parabenizar alguém em dois cliques (copiar/colar) da forma mais prática possível?! Outro dia, na zoeira, mandei um parabéns para a esposa de um amigo nosso em um dos grupos, mas não era o dia oficial do aniversário dela. Logo em seguida, adivinha: a galera do grupo mandou diversas mensagens de carinho. Até a não-aniversariante responder, e explicar que estava havendo uma confusão, era tarde demais. Foi ganhando parabéns de mais amigos e amigos. 10 dias depois, ainda ganhou parabéns daqueles que raramente entram no grupo pra ver o que tá rolando ali. O que me veio à cabeça com tudo isso está longe da boa/má intenção de todos envolvidos, eles simplesmente confiaram no que leram, quem nunca caiu numa fakenews?! Minha preocupação tá muito mais para o ritmo insano e naturalmente mais superficial que andamos nos relacionando e tomando decisões nas nossas vidas nos últimos tempos. A gente não sabe mais se é aniversário de alguém ou não, quando é não nos importamos em ligar, escrever, dedicar um pequeno tempo do nosso dia para o aniversariante e quando fazemos, fazemos de forma mecânica. Garantir que demos parabéns para alguém passou a ser mais importante do que dar os parabéns em si.

6h:49 a.m. Despertador toca. Levanta, medita, lê, escreve, faz exercício físico, toma café-da-manhã. Lê sua afirmação em voz alta. Depois de ter feito tudo isso olha para o relógio e são 8h:49 a.m, ao melhor estilo Milagre da Manhã. Nada contra, ao contrário, esse fui eu por um belo período. O que me chama a atenção é que bater a lista de execuções diárias (o pensamento mecânico) passou a ser mais importante do que a essência de cada iniciativa em si. Atualmente faço tudo isso mas, um de cada vez com mais tempo e mais qualidade. Diminui a frequência e aumentei a profundidade. Hoje por exemplo estou escrevendo há mais de 20 minutos e devo levar mais uns 20 para terminar essa crônica — e que gostosa a sensação de não ter nada além disso para fazer.

O pensamento mecânico vem te pegando há anos, sem que você perceba. Quer ver?!

Ficou com alguém? Ta namorando? Tá noivo? Casa quando? Tem filho? Vai fazer mais um? … Vai morar sozinho? Alugou? Financiou? Quitou? Quantos quartos? Tem varanda gourmet? Conhece Garden? … Nasceu? Babá ou enfermeira? Sogra? Doula, conhece? Vai para escola com quantos anos? Que escola? E o clube?

De que forma você respondeu, ou ainda vai responder as questões acima? A mecânica é o efeito manada que somos acostumados e talvez geneticamente moldados para responder. Se um vai o outro vai atrás. Estamos sob “toque de restrição”. Das 20h as 5h não pode mais sair de casa — nada de novo para quem é casado, mas — começo a achar que no lugar dos governantes deveriam ter colocado uma mãe para cuidar desse rolê: “a essa altura teríamos batido o prato (imunidade), tomado vacina e já tava todo mundo pronto para sair”. Longe de mim desrespeitar o sistema de saúde e seus leitos superlotados, negar os fatos e etc.; vamos fazendo a nossa parte. Angustiados por entrarmos de novo no loop infinito da incerteza, antecipação de feriados de 2022 (tem q rolar inovação), governo impõe uma lei, clientes 90% remotos há mais de um ano não necessariamente param, comércios fechados, empresários sangrando em caixa e desanimados com mais um baque e a saúde mental pegando geral. O vírus do convém não poupa ninguém. Por mais técnico que sejamos, em um dos três semestres de 2020 (o atual e os dois anteriores), já escapamos de um evento mala, uma reunião indesejada ou todas as anteriores nas costas do contexto. Já para conseguir aquele momento ao lado de quem amamos ou desejamos perto, não pega nada. Encontramos alguma brecha ou coragem e na dúvida fazemos um teste na farmácia — aquele mais em conta que dá falso-positivo, falso-negativo e nos ajuda a tranquilizar a cabeça.

Pandemia (ano I) tinha que ter onde escapar de São Paulo. Pandemia (ano II) tem que escapar do pensamento mecânico, escapar das ciladas que preparamos para nós mesmos, dentro da nossa cuca. Questionar, construtivamente, é como tomar fôlego nadando crawl. Uma respirada para dar belas braçadas. Muitas respiradas atrapalha o ritmo e se não respirar, se afoga ou nunca vai entender porque não chegou ao outro lado.

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