Serginho Batera e o punk para irritar coxinhas

pauli
Falando em Música
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10 min readNov 24, 2019
Serginho e sua camisa perfeita para os almoços de domingo.
Serginho Batera e sua camisa ideal para os almoços de domingo em família.

Anos noventa. Um bairro inteiro só de bares e, dentro de cada um deles, uma banda tocando durante a noite toda. Vários artistas que hoje são reconhecidos na cena bragantina começavam sua carreira na música, compondo suas primeiras canções e formando os primeiros grupos. Eram essas as memórias que Serginho Batera me descrevia enquanto dirigia o carro. Naquela época, ele era um desses jovens músicos.

— A gente tocava a noite inteira, ganhava merreca e ia embora bêbado pra casa.

Serginho é uma grande figura. Boa parte de sua família tem ligação com a música de alguma maneira, sua avó o colocou para fazer aula de piano com apenas quatro anos, instrumento que tocou até os quatorze. Durante este período ele também aprendeu violão, e mais tarde, a bateria, que se tornaria tão importante em sua carreira a ponto de completar seu nome. Teve sua primeira banda com 10 anos, a Eutanásia, e aos 12 já tocava na noite. Foi o começo de tudo. Outras pessoas importantes na cena musical independente de Bragança Paulista também compartilharam os palcos e as músicas com ele durante essa fase, como Fernando Maranho e Tatá Aeroplano.

Um sol dourado de fim de tarde nos recebia na entrada de Campinas, cidade natal da Drakula, banda na qual Serginho domina a batera desde 2015 e que faria um show naquela noite, na Casa Rock. Além dela, Serginho é baterista e cofundador da icônica Leptospirose, que nasceu em 2001 após uma semana sabática de janeiro fazendo música com Quique Brown e João Velhote no sítio de seu pai. Desde então, o “Leptos”, como é chamada carinhosamente pelos fãs, vem fazendo história na cena punk hardcore bragantina com suas músicas que ás vezes não passam de trinta segundos, mas são capazes de derrubar o teto de qualquer casa de show.

Quem esperava na porta da Casa Rock era Daniel ETE, um dos realizadores do evento da noite. ETE, além de guitarrista do Drakula, é um grande agitador cultural de Campinas, baixista fundador da banda Muzzarelas e responsável pelos desenhos da maioria das capas de álbuns de suas bandas e de parceiros, como os da própria Leptospirose. Um punk desenhista de muitos talentos. Ainda era cedo, o público e as bandas ainda estavam chegando, por isso houve tempo para colocar assuntos como a vitória do Bragantino, que havia acontecido naquela mesma tarde, em dia.

A Casa Rock é literalmente uma casa, os shows acontecem no quintal em um palco modesto, porém interessante. Os primeiros a se apresentar foram os paulistas da Grindhouse Hotel; Drakula veio logo em seguida e os americanos do Mondo Generator encerraram a noite com um show que foi, no mínimo, digno de respeito. O público se manteve extremamente animado durante as três apresentações, chegando ao ápice da euforia durante a última. Uma clássica roda punk formou-se em frente ao palco, dali em diante, muitos esbarrões e gritaria.

Alguns pareciam estar em estado de transe em meio aos acordes pesados que saíam das enormes caixas de som. Me chamou a atenção um rapaz loiro, que antes do show permaneceu sentado, sem interagir com ninguém nem nada além de sua lata de cerveja, mas quando os músicos subiram ao palco, não parou de dançar até o fim. Havia um refletor colorido que lançava pequenas luzes em seu corpo no escuro, era como uma espécie de entidade bêbada dançante.

— Te agrada? — Serginho me perguntava, usando seus inseparáveis protetores de ouvido e apontando para o palco — Eu curto!

E como curtia. Com o Drakula no palco, Serginho vestia sua máscara de luta, adereço usado por todos os integrantes da banda, e acertava as baquetas para todos os lados possíveis da bateria em um transe total. Fazia jus ao nome que o tornou conhecido. Quando todos os shows terminaram, fizemos o que era de costume desde o primeiro dia que o acompanhei: partimos para as ruas frias de Campinas durante a noite, o clima ainda úmido graças ao temporal que havia caído mais cedo. Estávamos em busca do fast food mais próximo.

Lar

No primeiro dia não havia frio, e muito menos chuva. Fazia um calor infernal enquanto eu tocava a campainha e esperava por Serginho. Uma das janelas da varanda se abriu e lá estava ele, sem camisa e com cara de quem havia acabado de acordar em plena tarde, o que é comum para quem vive de eventos que acontecem, na maioria das vezes, durante a noite.

Inicialmente, fui recebida na casa de sua mãe, dona Solange. Serginho mora nos fundos. O local era silencioso e passava bastante tranquilidade, como qualquer outra casa de família aos finais de semana. Porém, em poucas horas, nos encontraríamos em um cenário um tanto diferente daquele. Ele pediu para que eu ficasse à vontade enquanto vestia uma camisa para passar um café para nós. Minutos depois, voltou vestindo uma camisa vermelha com todos os símbolos mais odiados pela direita brasileira. Nas costas, o recado: “camisa para irritar coxinha”.

— Você vai tocar com essa camisa mesmo, Sérgio? — Perguntou dona Solange.

— Eu só toco com essa camisa, mãe!

Apesar de engraçado, o medo de dona Solange é compreensível devido ao atual cenário político do Brasil. Desde o seu surgimento na Inglaterra, o punk rock tem como identidade o posicionamento político, fazendo várias críticas e pregando o anarquismo. No Brasil o punk se popularizou na década de setenta, como uma reposta de resistência e luta pela liberdade de expressão em plena ditadura militar. Um dos episódios mais lembrados é “O Começo do Fim do Mundo”, que aconteceu em 1982 no Sesc Pompéia (SP) e é considerado o primeiro festival punk do Brasil. No dia do evento, houve invasão e repressão da polícia militar no local. Hoje, vários anos depois, é comum encontrar nas casas de shows e nos discursos das bandas um posicionamento que vai contra o momento conservador de direita que vivemos em nossa política.

A casa de Serginho é diferente da de sua mãe. Há uma escada na saída da cozinha que dá para sua sala de estar. Na parede, havia um quadro do The Who, sua banda preferida; Paulo Freire; fotos e matérias sobre o Leptospirose, dentre outras figuras dignas de admiração. E ele não é apenas colecionador de bandas, é também colecionador de discos. Ao lado do piano, primeiro instrumento que teve contato na vida, estão os armários que guardam seu tesouro.

— O primeiro que você encontrar nessa caixa aí, você já vai gostar.

E gostei mesmo. Era “Transa”, de Caetano Veloso. Edição original de 1972, um disco raríssimo que eu nunca havia encostado a mão. Sua capa não era comum, era tripla, formando um retângulo e uma seta quando era completamente aberta. A indispensável vitrola fica em cima de um hack acompanhada de outros aparelhos, o que Serginho chama de “mutante”, por causa da junção de vários compartimentos de som transformados em uma coisa só. Sua coleção contava com aproximadamente 1300 vinis, que ele adquiriu com familiares, vendedores e da maneira clássica: sujando os dedos nos sebos por aí. A década de 90 foi ótima para colecionadores de vinil, pois os discos perdiam espaço no mercado para os cd’s, que eram a novidade do momento. Assim, álbuns que hoje estão desaparecendo do mercado brasileiro eram vendidos por preços acessíveis.

A partir dos anos 2010, houve uma expectativa da volta do vinil por muitos entusiastas, mas que ainda é questionada por pessoas do ramo da música por causa dos altos preços e da maneira como são feitas as reedições. O certo é que, para pessoas como Serginho, o vinil nunca esteve em baixa.

Aos fundos ficava o estúdio de música onde ele dá aulas particulares para seus alunos e também faz gravações com suas bandas e músicos parceiros. O velho cão de pelos amarelados chamado Who, em homenagem ao The Who, era como um guardião na frente da porta. Perguntei a Serginho o porquê da preferência pela banda The Who, a resposta era simples:

— Veja um vídeo do batera tocando — Ele disse — o baterista era uma orquestra!

O cão Who em sua casa.

Nos porões do ABC

Munido de sua “camisa para irritar coxinhas”, meias com a bandeira do Movimento Antifascista do Brasil e a máscara que dona Solange reforçou para que não esquecesse de levar, Serginho tocaria com o Drakula no clássico 74Club de Santo André. O movimento punk do ABC Paulista foi bastante forte entre a década de 70 e 80, e também é lembrado pelas histórias sobre as brigas entre as suas gangues e as de São Paulo, relacionadas a rivalidade e marcação de território.

O 74Club é uma das casas que abrem as portas para bandas de rock que, assim como o Drakula, fazem som autoral, coisa fundamental para a continuidade do gênero no Brasil. É claro que existem inúmeros covers, mas ao contrário do que alguns pensam, bandas de rock autoral também existem aos montes. O espaço fica localizado em uma descida, ao lado de várias casas residenciais e poucos prédios, se diferenciando das outras construções por causa do enorme grafite pintado na parede da frente. Adentramos o portão preto de metal que dava para uma garagem, subimos um pequeno lance de escadas que dava para um porão onde aconteciam os shows, tinha cheiro de cômodo envelhecido e tudo era pintado de preto. Somente depois de mais um lance de escadas chegamos à sua entrada convencional.

Havia muita informação não só em suas paredes, mas o teto e talvez até o chão possuía enfeites peculiares como bonecas de cabeça decepada, sátiras com a imagem de políticos, quadros de filmes clássicos e recados do tipo “se fala top, vaza”. O DJ abriu a noite com uma ótima seleção 100% vinil, com faixas de rock desconhecidas por mim, passeando desde os clássicos americanos até os estranhos japoneses.

Foi naquela noite que conheci os outros integrantes do Drakula pessoalmente. Eram eles Artie (vocal), Fernando (baixo) e ETE (guitarra). Nos sentamos em uma mesa de frente para um enorme quadro do filme trash “Planeta Terror”. Serginho explicou que eu escreveria sobre eles.

— Relaxa, eu faço coisa pior — brincou Artie — Faço disco.

A banda que tocou primeiro soava como um surf music psicodélico, se chamava Gasolines. Depois, com os quatro membros trajando as máscaras pretas de lutadores de ringue, Drakula entra em cena. As notas pesadas da guitarra, bateria e baixo invadiram todo o porão. Vez ou outra, a voz de Artie era quase inaudível, mas todo mundo parecia curtir, fazia parte do espírito da coisa. Artie andava de um lado para o outro encarando o público, segurando firme na cabeça de quem estava na frente e cantando olhando nos olhos. Serginho espancava a bateria, atrás dele estava a palavra “RESISTA” escrita na parede. A baqueta se tornava um vulto em suas mãos por causa da rapidez com que ele atacava o instrumento. Foi um show curto, porém intenso o suficiente.

(Da esq. p/ dir.) Fernando, Serginho, ETE e Artie.

Punk Panelaço

Drakula e João Gordo.

Se engana quem pensa que São Paulo possui apenas restaurantes com sertanejo e covers fazendo música ao vivo. No bairro do Bixiga, em cima de uma barbearia, fica o Central Panelaço. Em meio ao bairro de dominância italiana, repleto de restaurantes servindo massas e carnes, o Central Panelaço traz um cardápio 100% vegano, mas não é só esse o ar da graça. O espaço é idealizado pelo rockeiro João Gordo, integrante da clássica banda punk paulista Ratos de Porão, e recebe bandas que fazem o chão do restaurante tremer.

João Gordo foi uma das primeiras pessoas que percebi em uma mesa muito próxima ao pequeno palco, até porque é meio difícil para uma figura como ele passar despercebido. Os integrantes da Drakula montavam os equipamentos no palco e trocavam ideia com ele. Serginho havia levado em seu carro uma bateria inteira, um amplificador e mais duas pessoas.

Com certeza não estávamos em um restaurante qualquer. Na verdade, me senti na casa de um enorme fã de Ratos de Porão. Camisetas, tênis, Cds, LPs, livros e muitos outros objetos da banda se encontravam espalhados pelo espaço, além de outros produtos de bandas de rock e da cultura pop. Mas nem só de punk vive o músico: em meio aos vinis à venda, encontrei o terceiro disco de Jorge Ben, o clássico “Ben é Samba Bom”, em um estado impecável. A descoberta me impressionou tanto quanto o preço: duzentas pilas. Acariciei aquele pedacinho de história da música brasileira que se encontrava nas minhas mãos e coloquei de volta no lugar, ficaria para outro dia.

Apenas Drakula tocaria naquela noite, por isso o show seria mais longo. Portando suas máscaras de luta, Serginho, Fernando, ETE e Artie subiram no pequeno palco de frente para as mesas e começaram seu trabalho.

— Eu falo “Gorila” e vocês respondem “Perez” — Artie conduzia o público — GORILA!

— PEREZ!

— GORILA!

— PEREZ!

E assim começava a música em homenagem à Gorila Perez, um lutador que, segundo Serginho, se tornou famoso não por sua luta, mas por sua feiura. O show prosseguiu animado e o público parecia aproveitar bem. No final, João Gordo subiu ao palco para agradecer a presença da banda naquela noite. As pessoas conversavam sobre os próximos shows que aconteceriam naquele final de semana, um deles dentro de poucas horas, em outro lugar do centro de São Paulo. Estávamos convidados. Eu sei lá se o rock morreu, mas pelo visto, o punk continua muito vivo.

Por: Paula Martins/Mariana Leme.

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Jornalista que gosta mais de música do que de jornalismo.