a luciana outra, Shrill e a força do coletivo

ou porque eu acredito que só na geração mais nova as coisas vão mudar de verdade

luciana moraes
falando sobre gordofobia
4 min readSep 28, 2021

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[adaptado e expandido daqui]

outro dia estive na praia e observei uma adolescente gorda. uma garota de uns 17 anos. de biquíni, sem canga, deitada o dia todo na espreguiçadeira, lendo. unapologetic. completamente indiferente ao mar que subia, ela leu o dia inteiro.

a garota, que se chamava luciana, me remeteu à luciana (eu) de 17 anos.

a luciana outra estava bem plena em seu corpo, a luciana eu jamais usou um biquíni antes de ficar viciada em anfetamina e magra.

a luciana outra plena, lendo, vivendo no mundo dela, mesmo mundo que a luciana eu de hoje demorou praticamente 40 anos pra se sentir à vontade de fazer — e também hoje tava eu plena lendo no meu mundo, com um pezinho na água e a atenção se vinha uma onda maior molhar meu novo da Sally Rooney. (pensando agora, depois que terminei de ler, podia ter molhado e estragado só o último capítulo. mas divago.)

em uma conversa com as adultas da luciana outra, dei dicas de marca de sutiã. a luciana outra sabia as lojas, tinha os esquemas. a luciana outra tem referência de corpos como o dela e não deixa que nada fique entre ela e o mar.

a luciana eu, quando adolescente, ia ao clube e tinha uma colega de escola, maior que eu, que ia na piscina de calça jeans e bota. essa colega da luciana eu era só referência de “você não quer ficar assim né, ter que ir de jeans e bota na piscina”. não, eu não queria. eu não queria que meu corpo limitasse o que eu posso ou não fazer e o que eu posso ou não vestir.

e por isso a luciana eu passou décadas tentando controlar e aprisionar o corpo em um formato que não é o dele. pra poder fazer coisas. ir à praia, que eu amo. usar roupa fresca, porque morro de calor. fazer educação física porque faz bem pra esse corpo e não pra ele virar outra coisa.

a luciana outra ali, com seus 25 anos a menos de vida que eu, tão livre quanto eu nunca fui.

fiquei feliz por ver que ela tem referências. por ver que ela tem opções. e me senti esperançosa.

assistindo Shrill (atrasada no hype, ainda estou na s01), o famoso episódio da pool party, quando a Annie pela primeira vez chega num ambiente gordo, me senti entrando no Pop Plus pela primeira vez. e Annie chega de calça jeans e bota. pensei de novo na minha colega de escola.

Aidy e Lolly comentando a cena da piscina.

o Pop Plus foi o primeiro espaço totalmente gordo que eu frequentei. já falei disso aqui (em 2015) e muitas e muitas vezes ao vivo pra Flávia Durante. de lá pra cá, nos 9 anos de Pop, em diferentes espaços, na piscina, no interior e até nas edições virtuais a sensação é a mesma: estou entre as minhas. muito mais do que um lugar pra comprar roupa, o Pop (a maior feira de moda e cultura plus size da América Latina) é um espaço de empoderamento, de troca, de aprendizado e diversão. é o lugar em que fazemos amizades incríveis, em que negócios nascem e em que nos organizamos como grupo. desde as primeiras edições em que eu e Rachel Patrício conduzimos conversas até cada uma das vezes que saí carregada de sacolas, sorridente, feliz, com o coração cheio. de lá pra cá eu me tornei também consultora de estilo e passei a olhar pra essa experiência como uma ferramenta importante de construção pessoal, de comunicação, de pertencimento. de existência em si mesma. em breve teremos volta do Pop presencial e mal posso esperar pra aglomerar com as minhas. em uma sociedade que nos hostiliza constantemente, ter esse espaço seguro e de troca é sim um oásis.

depois de se sentir completamente pertencente, acolhida e livre na pool party, Annie é exposta a uma violência gordofóbica bem dura. e aí ela tem uma epifania:

Annie (Aidy) tendo uma epifania

"eu sou gorda. eu sou gorda, porra. eu queria que alguém tivesse dito isso pra mim quando eu era mais nova." Annie no Fat Monologue do vídeo acima em uma tradução bem livre minha.

a epifania ter acontecido logo após a pool party reforça a importância dos espaços de empoderamento, da representatividade, do apoio entre outras de nós. mostra o quanto esse coletivo é transformador.

observar essas novas referências a que as mais jovens estão sendo expostas e vendo os efeitos e mudanças nas vivências delas dá uma esperança que no futuro a gente tenha uma sociedade à qual pertençamos de fato. e que as jovenzinhas engrossem nossas fileiras para que possamos cada dia mais ver mudanças estruturais, mudanças que de fato farão diferença, como a aprovação, no Recife, das primeiras leis antigordofobia no Brasil no último dia 10/09.

o caminho é longo. seguimos juntas porque é assim que somos fortes.

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