Corpo gordo e saúde (ou por que meu corpo é tema de todos os programas da globo?)

Rachel Patrício
falando sobre gordofobia
4 min readJul 25, 2017

Não é de hoje que venho percebendo uma intensa movimentação de alguns canais brasileiros em falar sobre ~obesidade. Num momento em que o debate sobre aceitação corporal começa a ganhar espaço, era esperado que houvesse um contra-ataque.
Um dos pilares (senão o principal pilar) da gordofobia é a estigmatização do corpo gordo. O estigma surge da necessidade de proteção de um grupo social para a manutenção de seus privilégios. Quando questionamos esses privilégios existentes numa sociedade magrocentrada, o caldo entorna.

Neste texto aqui, Marco Magoga explica bem o funcionamento da gordofobia na nossa sociedade como dispositivo normalizante,onde apenas o corpo magro (e sem deficiência) é hábil, saudável e capaz. Então existe esse imaginário de que o corpo gordo é um corpo transgressor e deve ser combatido. Esse corpo tem um caráter moral: glutão, preguiçoso, descuidado. E também é, acima de tudo, considerado um corpo doente. Sabe que corpo também era imoral e doente (e bem da verdade, ainda é considerado assim por uma parcela considerável de pessoas) até outro dia? O corpo LGBTQ. Guarde essa informação: a ciência até outro dia chamava uma pessoa homossexual de doente. Ainda chama o indivíduo trans de doente. A ciência não é neutra, ela parte de um ponto de vista.

Fato: toda a conversa sobre corpo gordo e saúde é pautada no emagrecimento. A busca por saúde na visão atual da sociedade é atrelada à longevidade e o corpo gordo é visto como uma bomba relógio, doente e temido. O termo “epidemia da obesidade” surge com ares de alerta e preocupação, ainda que na verdade seja muito mais uma manobra alarmista e higienista. Parece então ser impossível falar sobre saúde sem o enfoque no emagrecimento. Se décadas de estudos sobre a perda de peso nos ensinaram algo, é que mudanças na alimentação e exercícios trazem resultados modestos, mas não duradouros. Buscar uma boa alimentação, balanceada e saudável, e fazer da prática de exercícios uma rotina, traz indubitavelmente muitos benefícios para a saúde, mas a maioria das pessoas nem sempre apresentam perda de peso. Se a conversa sobre saúde é o que mais importa, por que estamos tão dispostos à adoecer indivíduos para que eles emagreçam?

Nunca se falou tanto em cirurgia bariátrica, programas matinais falam sobre a mutilação do estômago como algo incrível, um poço de benefícios, onde o mais importante é a recuperação da sua autoestima. Deus me livre gente gorda com autoestima, né? O que eles não apresentam são as doenças que diversos pacientes adquirem a médio e longo prazo. Anemias profundas, desmaios constantes, perda de dentes, perda de cabelo, um estado constante de desnutrição. Se o foco era saúde, por que nada disso é abordado? O importante mesmo é fazer mulheres (que são 85% dos pacientes que se submetem à cirurgia bariátrica) entrar num vestido 36. Não se fala das possíveis compulsões: sexo, jogos, alcoolismo. Mas ah, a saúde. E sim, é claro que as pessoas se sentem melhores quando emagrecem, o mundo não é feito para gente gorda. Da toalha de banho que não envolve nossos corpos por completo, passando por corredores estreitos, baias de escritório minúsculas, banheiros apertados, cadeiras frágeis, equipamentos de segurança que nos deixam à mercê de nossa própria sorte, equipamentos hospitalares que ignoram nossa existência: o mundo quer mais é que a gente morra mesmo. Ou emagreça, problema seu.

Se faz necessário olhar além do peso, observar os multifatores que compões o indivíduo, como sua carga genética, seu estilo de vida, contexto social, etc. Além de tudo, usar apenas o peso enquanto indicador de saúde é extremamente nocivo, sendo gatilho para um ciclo insalubre de tentativas de perda de peso à qualquer custo. Um estudo publicado na Revista Nature mostra como a perda de peso indiscriminada é determinante nos processos de adoecimento e apresenta considerável taxa de mortalidade. Numa suposta busca por saúde e adequação, adoecemos. O foco na culpabilização do indivíduo pelo seu peso resulta em menos atenção para outros tipos de soluções políticas de melhora na saúde e bem estar, como a dificuldade no acesso à uma boa alimentação por grande parte da população.

A saúde mental da pessoa gorda sequer entra em pauta. A forma como interações sociais negativas com nossa família, amigos, parceiros, médicos, colegas de trabalho nos afetam, os abusos físicos e verbais, ataques frequentes à quem ousa falar sobre gordofobia e ocupar os espaços que até então nos foram negados, ameaças de morte, mensagens de ódio. Unicamente por sermos gordos. Mas ah, emagrece que passa. Ser uma pessoa decente e tratar os outros com respeito nem passa pela cabeça desse bando de perturbado.

Gordo é gente. Gordo pode ser saudável, pode não ser, assim como qualquer outra pessoa desse planeta. E a busca por saúde não precisa passar pelo emagrecimento. Queremos nos reservar ao direito de adoecermos, como qualquer ser humano, sem que nossa moral seja julgada nesse processo, sem que sejamos negligenciados.

Paz, filhos da puta.

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Ps: Quer dizer então que a cirurgia bariátrica não presta? Não, arrombadinho. Mas não sou eu quem vai fazer a defesa dela, tem toda uma estrutura aí VENDENDO o negócio, fazendo concurso de Miss Bariátrica, não vai ser nesse texto que você encontrará a defesa da cirurgia (até pq, ó bem minha cara de quem tá aqui pra defender o status quo). Esse texto não é sobre PESSOAS, perde peso quem quer, eu não sou fiscal de ninguém. É sobre como a nossa sociedade entende saúde e corpo gordo. Brigada eu.

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