Será que é assim mesmo?

Para gostar de ler

“The Obesity Epidemic: science, morality and ideology” é uma ótima pedida para quem quer entender mais de gordofobia, da “crise de obesidade” e de ciência

Carla Soares
falando sobre gordofobia
8 min readMar 22, 2016

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Quando a gente escreve sobre o que lê, nossa relação com essa leitura costuma ficar um pouco diferente. Foi pensando nisso, que dei início a um projeto de registro de todas as leituras que estou fazendo - sejam elas acadêmicas, ficcionais, biográficas. O critério é que sejam leituras de livros. Estou publicando esse registro todo mês aqui no medium na Cabine literária. São relatos das experiências de leituras e não propriamente resenhas ou fichamentos. Minha ideia é poder “sentir” um pouco mais as leituras mesmo, ao registrá-las como impressões, na forma escrita.

Porém, este mês eu li um livro que se conectou comigo de maneira especial, e queria compartilhar de maneira também especial. Por isso, decidi escrever uma resenha mais extensa para ele. Primeiro porque não existe tradução deste livro para o português, e não é todo mundo que lê em inglês. Trazer à luz um pouco da discussão do livro é enriquecer o debate do tema na nossa língua. Isso é um trabalho muito necessário. Em segundo lugar, porque sempre tem quem quer se aprofundar no tema, mas não sabe bem como fazer. E isso torna este texto útil. Se você se interessa pelo tema da gordofobia, da presença massiva na mídia e na ciência da ideia de uma “epidemia de obesidade”, eu acho que este texto - e quem sabe, este livro - é sob medida para você.

The Obesity Epidemic: Science, Morality and Ideology (Michael Gard and Jan Wright)

Capa do livro The Obesity Epidemic. Ainda não existe tradução para o português.

Eu cheguei até este livro a partir da leitura de alguns artigos acadêmicos, e o li com o propósito de caminhar com a escrita do meu projeto de doutorado em comunicação social sobre o discurso dos “corpos em risco”. Eu não queria, contudo, que alguém lesse isso e se sentisse desencorajado de também ler esse livro por achar que deve ser leitura difícil demais. Até pensei em não contar como cheguei ao livro. Mas, no fundo, quero ser sincera. De toda forma, é um livro de linguagem acessível, especialmente se você tem alguma familiaridade mínima com a academia (por exemplo, se você já fez algum tempo de faculdade).

The Obesity Epidemic é legal porque coloca em perspectiva o quanto a ciência não é neutra. E não é que eu não nunca tivesse pensado sobre isso, ou discutido sobre o assunto com o pessoal da minha e de outra áreas. Mas esse livro mostra isso de maneira muito vívida e clara. Os autores são acadêmicos da área de educação física (!) em uma universidade importante da Austrália. Neste livro, eles examinam algumas vozes relevantes quando se trata do debate sobre a “epidemia de obesidade”: os cientistas da área de saúde (através de artigos científicos publicados nos mais gabaritados periódicos), a mídia, e os livros nas listas de mais vendidos com roupagem de “divulgação científica” sobre o assunto. O exame desses distintos objetos tem por objetivo questionar a voz única que aparece para dizer que estamos no meio de uma epidemia de obesidade, que coloca em risco “a própria civilização ocidental”. Eu sei, soa exagerado, mas é assim mesmo que muita gente da área de saúde escreve nos artigos. É assim, também que aparece replicado na mídia, e nas conversas comuns. Eu adoro Jamie Oliver, o chef britânico de vários programas de TV, e gosto do que ele fala sobre comida, porque eu me interesso sobre políticas de alimentação e odeio pessoalmente a indústria. Ainda assim, vamos ouvir o que ele fala de uma maneira menos pessoal (livre desse gosto pessoal) e mais isenta. Me diga se esse TED dele não tem esse mesmo tom de “fim da civilização” do qual The Obesity Epidemic aponta? E se não é assim mesmo que a mídia, de um modo geral, também trata o assunto?

Os autores de The Obesity Epidemic, no entanto, através do exame desses três elementos (publicações científicas de saúde, notícias na mídia e exame dos livros mais vendidos sobre obesidade), ponderam: existiria efetivamente uma epidemia de obesidade (e consequentemente, uma crise de saúde pública, como se alardeia) ou apenas um pânico norteado por questões morais mais do que por evidências científicas?

É no mínimo corajosa sua publicação, uma vez que desafia o discurso dominante dos riscos da obesidade. E que bom que existam vozes dissonantes nesse mundo!

E Michael Gard e Jan Wright conseguem não apenas ser corajosos nessa empreitada. Eles são instigantes, inquietantes, e muito claros na defesa do seu argumento. Eles, de cara, já problematizam o uso do Índice de Massa Corpórea (IMC) como parâmetro para se avaliar a obesidade. O IMC é problematizado por muito pesquisador e profissional por não ser muito preciso em delimitar a magreza ou a obesidade, não distinguir entre uma pessoa com muita musculatura ou muita gordura, nem levar em conta diferentes etnias, gênero e estruturas físicas. É por isso, por exemplo, que mulheres aparecem em proporção como mais obesas: a fórmula do índice é mais distorcida para os corpos delas que para corpo deles. A Organização Mundial de Saúde (OMS) adota o parâmetro do IMC, mas ela mesmo afirma que esse método tem problemas, e que quando usado em conjunto com outras medidas (como a correlação entre cintura e quadril, por exemplo) são mais adequadas. Ou seja: a OMS expõe que essas medidas são limitadas. Mesmo assim, o danado do IMC é insistentemente utilizado em revistas, na TV, em sites e em políticas públicas para se definir (com enormes problemas) o grau de obesidade e de risco de morte de determinada pessoa. Como se fosse fácil delimitar riscos, ou apontar o dedo indicando quem é “gordo”. E não é. São parâmetros arbitrários, e mal delineados pela ciência.

Há um capítulo no livro muito interessante que esclarece alguns dos principais conceitos em epidemiologia (como incidência e prevalência, e alguns princípios estatísticos que só são aplicáveis para populações e não para indivíduos). Por exemplo: se alguém afirma que a obesidade (de acordo com os critérios de IMC, que a gente já falou: são altamente questionáveis) aumenta em 20% o risco cardíaco, isso não significa que você, que pode ser considerado obeso pelo IMC tenha 20% mais chance de ter um problema cardíaco. Isso só é válido para populações. Como? Eu sei, é meio mindblow. Mas estatística é assim. A distribuição dessas probabilidades só é real se aplicada em populações, não em indivíduos. Por ser gordo, ninguém tem 20% a mais de risco de nada, mas mesmo assim a experiência nos consultórios médicos costuma ser essa. Populações são tratadas com estatísticas. Indivíduos, a gente tem de olhar pra ele, em específico. Tem de olhar as condições desse indivíduo, a vida que ele leva, outros quadros que ele apresenta, histórico dele, da família…. etc. Não é coisa que o pessoal anti-gordofobia inventou, é estatística. É noção básica, básica mesmo de estatística e epidemiologia. Coisa que eu, que cursei uma disciplina na faculdade, sei… mas que é um erro comum na mídia e nos consultórios médicos. Muito comum.

E acredite: apesar de falar de estatística, o texto não é nada enfadonho. É vivo, cheio de exemplos, e eu me pegava rindo e falando espantada “Meu deus!” em voz alta, enquanto lia. E eu não sou exatamente alguém que curte muito exatas.

É impressionante, por exemplo, ler alguns levantamentos de artigos científicos de pesquisas, repetidas por vários grupos de pesquisa, que não encontram correlação entre tempo semanal que se assiste TV e ganho de peso. Ainda assim, estas pesquisas concluem que o problema de não ser encontrada a correlação é porque a metodologia se baseou em auto relato, e (obviamente) os sujeitos participantes do experimento mentiram (!). Ou seja, nenhum experimento comprova que quanto mais tempo em frente à TV, mais ganho de peso se tem ao longo do tempo. Mas eles acham que não encontram esse resultado porque gordo é mentiroso. O resultado não encontrado não é o problema: o gordo é. Ele mente. Reiteradamente, em vários experimentos espalhados pelo mundo. Ahãn. Sério, e nunca deu pra fazer com outra metodologia? (deu, mas não é encontrada também correlação). É uma conclusão tão maluca que cá entre nós… E, o pior, é que a maioria desses estudos conseguem recomendar “é imprescindível que pais controlem o tempo de TV de seus filhos, caso contrário podemos estar diante de cenários de declínio de expectativa de vida, com consequências desastrosas para a saúde coletiva”. De onde tiraram a conclusão se os dados acabaram de mostrar que não há nenhuma correlação? São conclusões e conclusões mostradas no livro que não tem nenhuma base nos dados que foram encontrados, e simplesmente correspondem ao que o cientista acredita que deveria encontrar (mas que nunca encontrou). A ciência, como se pode ver nesses exemplos, pode ser contaminada pelas crenças e valores dos cientistas que a produzem. Se ele acha que o gordo é preguiçoso, mentiroso, etc, os preconceitos aparecem nos resultados, a despeito do que mostram os dados. A ciência isenta é um mito (e isso é uma discussão imensa). Mas daí para a divulgação, via imprensa, de resultados que pouco têm de empíricos ou isentos, é um pulo. A mídia, claro, é parte da sociedade e põe em circulação saberes e valores que fazem parte dessa sociedade.

Os autores também examinam algumas razões que levam à associação entre gordura e falha (e vale a pena um outro texto só pra falar disso!) e é categórico em mostrar pesquisas que atestam a intrusividade e o quanto é nociva essa associação na vida de pessoas gordas, que são as mais afetadas, mas também tem efeitos sobre pessoas com excesso de peso, e magras. Afinal, o alarme do risco parece querer acordar e instaurar a vigilância em todos (e especialmente a alguns grupos, como mulheres, negros e pobres, que são discutidos de forma rápida nesse livro). Como profissionais da educação física, também afastam com muita coerência e dados o quão descabida são as sugestões (majoritariamente feitas por especialistas de outras áreas, ou consultores governamentais não-técnicos) de uma educação física nas escolas que se prenda a um modelo fitness, voltada para a perda de peso ou prevenção da obesidade em crianças, ao invés de enfatizar o prazer e o desenvolvimento de habilidades motoras nas aulas. Spoiler: porque não dá certo. As crianças aprendem somente mais a ter pânico de mexer o corpo por não se sentirem adequadas (a noção de fitness já pressupõe um “adeque-se, fit in”).

Livro para questionar (E MUITO) o alarmismo em torno da obesidade, pra começar, e claro, as consequências desse alarmismo. Afinal, será que existe mesmo neutralidade no discurso da ciência (que é sempre feita por pessoas)?

Ah! Se você se interessou em não ficar só no meu relato e ler o livro, ele pode ser comprado aqui, que não cobra taxa de envio mesmo intercontinental. Mas ó: você também acha ele em pdf na web. O dólar anda caro, eu sei.

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Carla Soares
falando sobre gordofobia

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem