Mas me conta… como foi que você se aceitou?

luciana moraes
falando sobre gordofobia
3 min readAug 7, 2017

Temos visto um monte de pautas relacionadas a corpo gordo, como bem pontuou a Rachel aqui. Isso é um reflexo necessário da maior disseminação do debate e o aumento dos eventos e debates dos setores. Todo e qualquer assunto acaba esbarrando na pauta, temos até nossa própria página de ódio dedicada [sigh…]

E aí que quase todo dia alguém pede um personagem com uma história de superação. Com uma história de como essa pessoa se aceitou. Com a história da ‘saída do armário’ do gordo.

Sair do armário é libertador sim, porque este, como todos os demais armários, é sufocante. Mas não dá mais pra ser pauta o tempo todo. [aliás sou partidária de que não deveria ser pauta nunca, mas sigamos]

A fixação das pessoas com histórias de superação, como se todo gordo que faz qualquer coisa seja um herói é um fenômeno que merece estudos. "A gorda que trabalha, que dirige, o gordo que que cuida de uma casa, que transa: onde moram, de onde vêm e como se alimentam, sexta no Globo Repórter." [Globo Repórter esse que invariavelmente vai ressaltar a importância dos cuidados com a saúde, claro, porque você pode ser gordo mas trate de andar com seus exames de sangue na bolsa pra comprovar seus níveis de colesterol e glicose.]

E aí de mãozinha dada com a superação [que traz nas entrelinhas “Para ter uma vida ‘normal’ você vai precisar ralar 70 vezes mais”] vem o “Como você se aceitou”.

Talvez na busca de um modelo — se ela aprendeu a se aceitar, eu que sou menos gorda também posso. [Não vou entrar no mérito aqui do gordo comparativo, senão vou precisar matar todo mundo. Fica pra outro dia.] Ou como um novo padrão. All te right junk in all the right places.

E aí que a pessoinha precisa se aceitar. Vem, vamos ser empoderadas. Vamos pintar o cabelo de azul e usar roupas holográficas. Virou sua nova obrigação.

Vem aqui um pouco, vamos acompanhar a história da Cleide.

Ora, durante toda a sua vida, Cleide ouviu que não é adequada. As roupas não servem, a catraca prende, o banco do avião não cabe. Cleide lê bastante e aprendeu que o seu corpo não pode ser parâmetro do seu valor. Cleide racionalmente tem certeza disso mas, na prática, a forma como Cleide se sente é um resultado da soma de uma série de coisas, muitas delas distantes do nível mental de consciência.

Cleide está se sentindo super empoderada e senhora de seu destino. Cleide liga a TV e todos os corpos como o dela são preguiçosos ou motivos de piada. Cleide desliga a TV, lembra que tem uma festa no dia seguinte e gostaria de comprar uma roupa mas em sua cidade não tem nenhuma pronta entrega que sirva. Cleide, então, senta em uma cadeira cujas pernas não suportam seu corpo. Cleide tem uma faringite e não quer ir ao médico porque sabe que ele vai sugerir um regime.

Cleide pensa ‘cazzo, o mundo não é adequado pra mim mesmo’. E isso abala um pouco a forma como ela se sente. Aí Cleide se sente mal por duvidar e na sequência sente culpa por essa contradição entre como se sente e como acha que devia se sentir.

Cleide está em crise, vê várias entrevistas que falam como gordas se amam. Como gordas superaram tudo. Cleide se sente fraca.

Cleide entrou num ciclo de culpa porque o discurso não necessariamente a contempla. E porque o mundo segue não a contemplando.

O ponto é que, de um ponto de vista macro, como eu me sinto comigo é irrelevante.

Claro que é bacana nos sentirmos bem conosco mesmas, nos acharmos bonitas, termos auto-confiança. Mas isso é uma questão particular, que cada pessoa precisa construir individualmente. Há mulheres magras que passam por isso, há dismorfia, há um sem número de distúrbios causados pela pressão estética. [E tem aí todo um feminismo trabalhando há já meio século pra desconstruir esses padrões. Trabalho de formiguinha.]

A mudança interna de auto-percepção pode levar anos, pode acontecer em um estalo e pode nunca ocorrer.

Mas se um belo dia todos os gordos do mundo se aceitassem e dissessem para a sociedade “Eu ‘tô linda, livre, leve e solta, doida pra beijar na boca” UHUL TEJE DESCONSTRUÍDO O PADRÃO. Ainda assim nossas bundas ficariam presas em catracas, nossas doenças reais seriam negligenciadas e as imaginárias exacerbadas, seríamos preteridos em empregos, fetichizadas em relacionamentos. A mudança necessária é estrutural da sociedade.

Acessibilidade é um tema premente. Cuidado médico, negligência e estereotipação do corpo gordo também. E devem ser tratados de forma coletiva, como tema da sociedade.

Precisamos urgentemente passar para o próximo passo da conversa.

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