Uma carta de amor da sua miga gorda

luciana moraes
falando sobre gordofobia
6 min readFeb 23, 2016

tradução livre de "A love letter from your fat friend", da Your Fat Friend. Você pode ler o original em inglês aqui.

Minha querida,

Eu sei o quanto tá foda — como os dias estão duros. E nunca te amei tanto quanto hoje.

Porque eu sei o que tá rolando. A vergonha que queima quando você olha praquele jeans no armário, que só tinha um tamanho pequeno demais, e sua amiga falou que ia te motivar. Querer ir pra academia mas sentir que tem que enfrentar um monte de encaradas, cochichos e comentários, e além do mais vestindo o quê? Considerar seriamente pedir aquele suplemento do Dr. Oz que você SABE que é um embuste, mas você já tentou de tudo.

Se vestir de forma impecável todo dia, para sua própria segurança. Gargalhar bem alto de piadas sobre gordos, assim ninguém vai achar que você é um deles. Aquela ansiedade ao pedir comida em público, porque se você pedir massa, todo mundo vai te olhar e pensar 'gorda fazendo gordice', e se você pedir salada, todo mundo em volta vai pensar 'como ela chegou nesse ponto?' . O sorriso forçado quando você ouve "você tem um rosto tão bonito". E remoer por que você se sente mal com elogios como esse.

Se convencer de que você está bem, você não tem que ir ao médico. Lembrando da cara de condescendência da enfermeira quando ela diz que vai te pesar, como se isso não acontecesse toda vez. O tom de decepção do médico que não faz nenhum exame e só te diz para perder peso.

O coração acelerado quando você entra num avião. Se encolher no assento, respirar de leve e manter braços e pernas cruzados durante todas as 5 horas de vôo. Passar as férias inteiras rezando para que ninguém reclame de ter que sentar do seu lado no vôo de volta.

Chorar no carro depois da reunião de família, quando alguém fala de cirurgia bariátrica e outro pergunta se você TEM CERTEZA que vai comer as batatas. O silêncio cortante depois desse comentário. Você aprendeu a quebrar a tensão. O momento passa. Mais tarde, você queria estar morta.

Consolar sua amiga magra, insistindo "você não é gorda!" enquanto ela chora porque veste 42 e logo vai ter que comprar em lojas plus size. Deixar seu parceiro criticar seu corpo, porque ele tem um ponto, né? E os comentários dele vão te ajudar a finalmente emagrecer.

Planejar silenciosamente seus dias, semanas, vida, para evitar as situações cotidianas que te colocam para correr atrás do rabo. A poluição pesada e úmida que se acumula na sua vida e nos pulmões. O mecanismo constante da ansiedade. A respiração que fica mais sobressaltada todo dia.

E então, um dia, você acorda e pensa o impensável: talvez você seja gorda. Depois de todo o tempo, dinheiro, preocupação, envolvimento e vergonha de ter tentado todo programa, remédio, dieta e treino sob o sol, talvez seja isso. Talvez você não vá perder 10, 15 ou 30kg. Talvez seja ESSE o corpo que você tem.

O pensamento é assustador. Porque você tem que abandonar o sonho daquele corpo que não é o seu, e talvez nunca seja. Porque muitas das suas relações, um tanto do seu dinheiro e outro punhado do seu tempo estão concentrados em tentar desesperadamente perder peso, todo ele, de uma vez, o mais rápido possível. E se você não está o tempo todo correndo atrás de um corpo menor, então quem é você? E quem vai te levar a sério?

É assustador por causa de tudo que você ouviu a vida toda, de como é horrível ser gorda. A gorda é a moral da história. É o pior cenário. Ser gorda é ser isolada, sozinha, preguiçosa, sem força de vontade. Significa ser feia e não ser amada. Ser gorda significa desistir. Ser gorda significa que os cochichos e agressões veladas de estranhos, família, amigos, médicos — tudo isso segue.

Mas você não merece ser tratada assim. Ninguém merece. Você não merece o bullying bem intencionado dos parentes que insistem que só estão fazendo isso pro seu bem. O seu corpo não dá ao seu parceiro o direito de te diminuir ou fazer comentários abusivos. Seu peso não significa que você merece condescendência, críticas ou ser ignorada no consultório médico. Ter um corpo gordo não significa que as pessoas podem te tratar de qualquer jeito.

E agora, querida, você pode sofrer. Fique triste. Lamente o corpo que você não tem — não porque ele é melhor, mas porque você se agarrou à ideia dele durante tanto tempo. Chore pelas coisas cruéis e insensíveis que as pessoas te disseram. Fique com raiva do médico que não quis fazer nenhum exame porque ele disse que você só precisava emagrecer e deixou seus sintomas piorarem tanto. Ria do absurdo de pessoas magras comendo salgadinho enquanto te dão um sermão sobre ir à academia.

Coloque para fora todas as coisas horríveis que as pessoas disseram e fizeram, a tristeza profunda que você carregou por tanto tempo, a ansiedade e frustração e isolamento. Nada disso merece seu tempo.

Então sinta a leveza imensa no seu corpo. Sinta o peso que sai dos seus ombros, relaxe as sobrancelhas, respire bem fundo.

Você é gorda. E você pode seguir em frente.

Pode ser complicado descobrir quem você é sem estar o tempo todo pensando e falando de dieta. Pode ser que você se sinta meio à deriva. Mas esse sentimento é o precursor de uma libertação maravilhosa. É um vislumbre de céu flamejante antes da alvorada. É um novo dia e agora o mundo é seu.

Você pode comprar roupas que sirvam em quem você é. Você pode comprar roupas que sirvam! Compre coisas que você quer usar: cores fortes, regatas, cinturas baixas, saias curtas, listras horizontais. Quebre as regras da moda. Experimente. Brilhe. Fique estranha! Encontre o seu estilo, para além das infinitas regras estabelecidas para você por gente que odeia seus corpos, como você odiava o seu.

Você pode encontrar mais gente gorda, ou gente trans, ou gente com deficiência, ou gente intersex, novos amigos que também andam tendo ideias perigosas. Que estão percebendo que os comentários maldosos não os fazem mais felizes, saudáveis ou estáveis. Que estão alimentando aquela voz em suas cabeças que diz 'essa pessoa não tem um ponto. Talvez ela esteja só sendo escrota'.

Minha vó falava "não é só porque alguém te jogou uma bola que você precisa pegar." Você pode deixar essa bola cair.

Você pode sair do armário como gorda. Fale para seus amigos, sua família, estranhos no mercado, para quem você quiser. Treine dizer antes que alguém tenha a chance. Com o tempo, vai ser mais natural. Com o tempo, os comentários vão doer menos, porque você sabe seu valor e você sabe que seu valor não é determinado simplesmente por ter um corpo gordo.

Você pode viajar, aprender a andar de patins, comprar um maledeto biquini! Pode dizer que gosta de alguém, que quer sair com esse alguém ou transar com esse alguém. Comece a nadar na piscina pública porque você nada bem e isso te faz feliz. Você pode fazer o que você quiser, porque o que as outras pessoas falam é delas. Você sabe quem você é e parte disso é gorda. O que mais podem falar?

Você pode se defender. Responder para o médico que diz que você não teria tantas infecções no ouvido se não fosse gorda. Pedir para sua tia parar de falar de programas para emagrecer. Dizer para aquele babaca do bar que você não quer dormir com ele. Você dá conta.

Você pode largar mão da fuga constante. Pare de atuar, internalizar, se espancar. Declare um cessar fogo com seu corpo. Em algum ponto mais para frente você pode até aprender a amá-lo. Você pode ATÉ começar a acreditar em mim quando digo o quando você é linda.

Você pode viver. Faça o que te faz feliz — feliz MESMO. Foque no trabalho, na família, em você. Seja voluntária, mude de trabalho ou finalmente chame o vizinho gato para sair. Veja o quanto você está forte e resiliente e exercite isso. Coloque esse músculo para trabalhar em uma vida que você ama.

Não é fácil. Vai demorar. Os amigos também vão falar merda. Os passantes também. O mundo vai continuar te atacando. Mas você não vai se atacar. Estará ocupada demais com uma vida que você ama.

Seja bem vinda, querida. Sinta o sol. Eu estava te esperando.

Nota da Luci: eu queria agradecer à Talita de Moraes por me mandar esse texto. E à Rchl Ptrc por ter estado me esperando. E a todas vocês que eu encontro em algum ponto do caminho. Obrigada.

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