Águas dobram feito papel

Camille Perissé
Fale com Elas
Published in
3 min readDec 28, 2018

O apito grave soa três vezes. Ela nunca conseguiu captar da onde vem exatamente o barulho, e pensou consigo mesma que fazia sentido vir da popa, e não do cais: parece não restar nada ali na rampa depois que o último marinheiro embarca. De qual objeto vem o som não importa, ele lhe é familiar, um urro na boca do mundo.

A neblina ainda deixa o pensamento preguiçoso, aos poucos se dissipando. Ellen senta na quarta fileira à janela, não quer ser incomodada pelos passageiros que conversam e fumam no convés. É difícil ter empatia plena por pessoas que se agitam antes das águas. Pois no sereno da manhã, as águas só refletem. A baía num estado meditativo e brilhante. Raios que batem e brilham no azul. Ainda está calmo, a barca desliza, criando linhas de expressão, e só. Ah, se fosse só isso… Mas só não é possível.

No fim de tarde, sem mais espelhos, as águas dobram-se em muitas linhas e mexem-se, remexem-se. Nem à noite, não param, suas ondinhas, seu sobe e desce desvelam um organismo todo vivo por baixo. Ellen sente que algo está prestes a acontecer, como o tremor de um vulcão.

Mesmo que o azul pareça negro, mesmo que gelado como morto, o mar não descansa. Ele sustenta todos os barcos nos ombros. E num desses tantos, em braços e ombros, aquele encontro. Ellen alterna o banco, passa e volta, fita e se ancora numa tatuagem. Parece um volante, uma direção, referência que ensina pr’onde olhar. Símbolo histórico qualquer, com uma mágica inutilidade. Mas neste momento o que vê é só seu, é possibilidade.

Ao passar por baixo da ponte, o Sol se esconde e o tempo não abre novamente. Então chove, aí quando chove… não dá. São águas que caem, embaçam, da maré vêm revoltas. O céu a salivar. Cinza com branco, azul com sono misturam-se numa manhã irrefletida e em erupção. Tão natural o vulcão se anuncia. No entanto, lá Ellen está, sem nenhuma medida de proteção.

Ela desembarca e entrega-se ao fluxo que direcionam seus pés, água quente escoa entre as pernas. Um diálogo: — Então. O último dizer racional, mas já incoerente, precedendo a bomba, a enxurrada, a saliva do céu da boca, que unem todo o estremecer dele com arrepio dos pelos dela. Já estoura aqui mais uma história, do lado da banca de jornal — que dia é hoje? Não importa o que era só ou impossível.

Todo o resto é um desejo rápido: sentir o suor, que o corpo se liquefaça, até seu gozo. Sentir-se a dissolver e a vaporizar, até que sobre de tanta paixão um grão de sal,

boiando sal solitário
no tempo.

Voltar a ser grão depois das águas é a nudez das cores do mundo
empalidecendo.

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Camille Perissé
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Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros