Coletânea: A escapada e outros contos

Camille Perissé
Fale com Elas
Published in
5 min readJun 5, 2019
il: Graça Lima

A escapada

Todos sabem que é do feitio dos gatos realizar passeios noturnos. Mas era a primeira grande fuga de Nelson. Quando os morcegos começaram a ressonar alto e não se ouviam mais barulhos humanos, Marie Clementine esbugalhou os olhos de coruja e todos percebemos o tamanho de sua aflição. “Ele é apenas um bebê mimado” — disse, tomando um gole de seu décimo primeiro chá — “ficou puto com o fato de darmos mais bola pros convidados, mas vai voltar assim que tomar uma primeira arranhada”. Jimena lavava os copos e víamos em seus gestos que aquela seria sua primeira e última visita. Também nos sentíamos culpados, afinal, era logo às vésperas da nossa mudança. Porém, não havia como desfazer nosso contrato com a bruxa corretora. Ainda mais por causa de um felino enciumado. Todos já sabiam que teriam que nos aguentar por mais trinta meses. Seria feito o ritual de união, com ou sem aprovação de Nelson.

A cada barulho de folhas, achávamos que era ele. Um arrepio corria por entre nossa roda, só não alcançava Franco que, de olhos céticos e vermelhos, já conhecia de cor o salto dos macacos. A madrugada iluminada pela Lua passou num piscar, e assim, no momento de a aurora se anunciar, estávamos um pouco mais relaxados e embriagados quase a ponto de despreocupar-nos do ocorrido. Não lembro muito bem quando foi que a serenidade da floresta abriu espaço para Marie exclamar: “Dioses, una tarântula! Si Nelsitos estivesse brincando com ela seria destruído!”. Meu noivo Vishnudeva foi correndo acudi-la e vimos que, por pouco, seu sapato não esmagou uma das oito patas. Felizmente ou infelizmente, tudo foi resolvido com água fervente.

As escapadas de Nelson nunca superavam três ou quatro horas, mas naquela manhã completaria um dia. Era exatamente o que deixava sua mãe tão desnorteada. Não sabia mais o que fazer, os chás já não eram suficientes, nem nossa fumaça. Meses depois de todo o estresse encerrado, o corpo da mãe-coruja ainda traz marcas de erupções purulentas como sintoma do trauma. Furúnculos: primeiro na panturrilha, depois na nuca.

Nelson, por sua vez, voltou também com machucados, na tarde seguinte. Após avistar do mato em que se escondia as figuras de seus pais de criação subindo a trilha, o gato pulou ao lado de Marie e Franco, mas não aceitou ser pego no colo com mimos e carinhos. Seu olhar guardava um mistério desconfiado, e os pelos negros apresentavam várias falhas, onde percebiam-se riscos de sangue endurecido. “Onde você se meteu, Nelsitos?”

Eles o trouxeram de volta para a congregação, deram de comer. Suas brincadeiras estavam mais agressivas. Lá pelas tantas, o miado começou a soar diferente, com o timbre engrossado. Não sei muito bem porque, numa intuição sinistra, despejei o chá mágico que tinha acabado de tirar do fogo na vasilha de água do bicho. Ele lambeu com cuidado, como quem já soubesse o perigo de queimar a língua, e logo soltou um “Huuum.” Estremeci. Mirei a porta de entrada, para ver se Vishnudeva já tinha chegado. Quando virei de volta, Nelson já havia corrido saltitante para o corredor, quando pulou a janela e gritou “Mãããe!”. Marie apareceu com os olhos mais arregalados que da noite anterior. O gato desatou a falar. “Eu não sou mais bebê, mãezinha!”

Todos fomos sentando em volta do bicho no quintal, até Jimena interrompeu sua oração às Deusas para escutá-lo. Estava feliz da vida por não ter desencadeado o desaparecimento da vítima. Outros que iam chegando foram de acomodando também. Acendemos a fogueira no meio da roda.

“Aonde você foi parar, Nelson, que agora já voltou até sabendo falar?”

“Agora entenda que seu filho tem segredos. E segredo de gato é sagrado.”

“Segredo é a vassoura que você vai sentir na sua bunda peluda! Ou prefere que nosso jantar seja churrasquinho?”

Diante da ameaça, ele só fez uma careta e escalou um galho, nitidamente mal-humorado. Começou a empurrar e a desenlaçar objetos de Marie, como o apanhador de sonhos e outras joias penduradas na árvore. Ela ralhou com o felino. Nós continuamos em volta da fogueira, olhando as estrelas, alheios à briga. Até que ouvimos a confissão: “Mãe, sou gay”.

Gargalhadas. Não sabíamos da onde Nelson tinha tirado todo o vocabulário. Mas já era de se notar seu encantamento pelo gato cinza dos bruxos vizinhos. Como ele esperava que a gente não visse isso com naturalidade? Fizemos um belo banquete aquele dia, em comemoração. De nossa entrada na congregação à sua saída do armário.

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Camille Perissé
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Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros