A Linguagem das Flores: Higanbana
A última primavera.
Levantou-se. Lírios-aranha exalavam o profundo aroma oriundo das sombras de uma póstuma primavera. A última.
Desde que houvera partido, jamais vira os lírios higanbana(*) novamente.
Em Kyoto, a primavera não estende seu manto sangrento sobre as planícies, como na Tokyo de eras passadas. O mar vermelho e sublime recordava a sangria das perdas de seu passado.
Uma criança inebriando-se na vastidão carmesim dos Equinócios de Primavera; a arte de lidar com flores, pétalas de melancolia e contentamento. Aiko hesitara. Havia anos… partira à um mundo inóspito, despreparada para as agruras de um cotidiano vívido nas agitadas ruas de Kyoto. Arranjara um emprego, subalterno, talvez? Porém, em suas ligações telefônicas, sempre ponderara: “Estou feliz, mãe. A cidade é linda e crescerei financeiramente. ”
Não haveria como retornar para casa. Fugindo da pobreza nas vielas de Ueno, onde vivera ao lado da família. Aiko era a única esperança de um repouso próspero aos pais, idosos e cansados. A mudança para Kyoto, anos e anos de poupanças, economias em nome do futuro de uma jovem prodígio. Aiko.
O mundo caíra sobre seus ombros, responsabilidades despencaram com o peso das expectativas latentes, sobre a jovem no auge de seus vinte e dois anos. Aos feriados, em pequenos momentos de pausa em seu ofício, ela desenhava. A caneta circunscrevia no dorso da folha, deslizando diligentemente sobre a imensidão branca: vermelho. Vermelho como os lírios higanbana de sua infância, como a cor da nostalgia inóspita.
Vermelho como o quimono tecendo um leve caimento sobre o corpo da gueixa em seu desenho. Tudo era vermelho. A vida e a saudade causavam-lhe um nó no peito. Porém, não haveria regresso, exceto, atingindo o sucesso desejado. Se ao menos conseguisse a quantia adequada de dinheiro… Retornar, finalmente, para casa.
Aiko ponderou, levando umas das mãos à cintura. Enquanto revirava a carne de porco na chapa, aguardava o momento em que, minunciosamente, aprontaria o alimento.
O cliente, ávido, pedira um Shogayaki para viagem. Transpirando, o arco da perfeição fazia-se presente na execução do prato. Diligente e rápida, as mãos da moça precipitavam-se sobre a comida que, chegando às mãos do freguês, lhe abrira um lépido sorriso: “Obrigado, tenha uma boa noite. ”
Noite. As horas passavam rapidamente, os segundos lhe transpassavam despercebidos. Noite. O véu conscrito do tempo, estendendo-se sobre a vastidão, demarcava o período em que retornaria para o cubículo ao qual chamava: lar.
O casaco surrado, a pequena bolsa, “Botchan” entre o antebraço e o dorso, o pequeno guarda-chuva e uma parcela de sonho. As folhas farfalhavam naquela noite de outono, enquanto Aiko precipitava-se através das avenidas. Exalando nostalgia e saudade, deixava um rastro vermelho pelas ruas de Kyoto.
(*)Higanbana: nome japonês da flor Lírio-aranha; comumente vermelha, na cultura japonesa é associada à dor da perda, saudade, morte e recomeço.
Yasmin Morais é uma jovem baiana escritora, atriz e aluna do curso de Comunicação na Universidade Federal da Bahia. No ano de 2017, estreou no teatro com a peça “De Ponta Cabeça: Baobá” e tornou-se integrante do projeto literário “Escritoras Negras da Bahia”. Escreve para as revistas “QG Feminista” e esporadicamente para a “Fale com Elas” no site Medium e possui um blog literário intitulado “Minha Doce Paranoia” onde publica seus textos.
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