Após “A Ceia”

Camille Perissé
Fale com Elas
Published in
3 min readNov 25, 2019

Hoje eu contei. Fazem 45 dias desde a sua última ligação. Lembro muito bem o alívio e certa alegria naquela voz serena e sonsa. Como se eu acabasse de lhe tirar um peso das costas. Mal sabe ele o quanto custei a ensaiar aquelas palavras. Levou uma tarde, ao menos. Primeiro rabisquei tudo no papel. Não sei se prendo aqui com clips. Ai, por que não desapegar e queimar, jogar fora, como as mulheres de filmes? Tacar fogo é clichê, mas é como um pequeno ritual. Pode me fazer bem. Quando vejo as manchas de rasuras e rugas de suor naquela folha me acho tão tola… Por que tanto esforço para deixá-lo menos culpado? Por qual estúpida razão haveria tanta esperança de que fosse perspicaz e se esforçasse para entender minhas entrelinhas? Ele só queria mesmo um álibi. Que partisse de mim, enfim.

45. Quarenta e cinco dias. Um mês e meio. A leveza daquele “A gente continua a conversar” como que fingindo que — até que enfim! — chegou a vez da amizade, como que atendendo ao meu pedido naquela maldita ceia, um rompimento aos poucos, a civilização. Portugueses na América. Papo furado. Eu já devia imaginar. Meus ouvidos tentaram espremer pelos fios e sem fios um pingo de ciúmes vindo do lado de lá, quando mencionei Fernando… Ilusão. Não há mais nada. Nada, nada, nada. O que um peixe faz para arrumar uma namorada.

Nem mesmo a pretensa preocupação com a situação de uma solteirona nessa idade. Nem o simbolismo do toque do telefone. Eduardo só se preocupou com a sua imagem, de não ser aparentemente um idiota. Para mim. E para ela, o noivo. E para a sociedade, o príncipe. Que nunca se casa com uma bruxa velha. Pois agora, o pouco que me resta a fazer é desobedecer e escrever aqui, embaixo desses números ridículos. Ele foi um idiota. Vou escrever em todas as páginas e ano que vem, se ainda estiver viva e sobrar raiva, compro um diário novo só pra escrever e lembrar também. Canalha.

Esse texto foi construído como um exercício de dar sequência ao conto de Lygia Fagundes Telles: “A Ceia", na oficina Liberte o Escritor

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Camille Perissé
Fale com Elas

Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros