Imagem: Isabella Luiz

Breves bravuras com diagnósticos tardios.

Sobre descobrir o TDAH na vida adulta e a arte involuntária do recomeço.

Celina
Fale com Elas
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5 min readSep 21, 2021

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Fui uma filha “problemática” de uma família grande, a maior parte do interior de Pernambuco e da Paraíba. Meus pais tiveram outras três, mas nenhuma deu tanto “trabalho” como eu. Era a espevitada que sempre tinha uma resposta na ponta da língua, ora falante demais ora assustadoramente quieta. A menina que se escondia na ficção dos livros e das histórias que criava. Criativa, agitada, de lua, pirralha, traquina, ferinha, doidinha das ideias, louca.

O colégio para mim foi uma sessão diária de tortura, onde me forçava a estar presente. A cabeça dava um jeito de viajar para outro lugar, qualquer coisa era motivo de me desligar da realidade e me perder numa confusão de pensamentos silenciosos no fundo de uma sala. Um ventilador sujo, uma luz mais fraca, a temperatura baixa demais do ar-condicionado, a lembrança de uma história que tinha lido num livro da biblioteca na semana anterior. Era a típica aluna “desinteressada” que era repreendida por estar sempre no mundo da lua, por não escutar o que algum professor dizia ou não entender muitas vezes uma instrução simples, mesmo que fosse explicada duas ou três vezes. Esquecia as tarefas de casa, as datas de trabalhos e provas. Passava batido, ia para recuperação, deixava tudo para o último segundo, quase como um esporte. Só terminei o ensino médio por insistência da família e de amigos que viam o sofrimento que enfrentava para manejar os conteúdos e as relações sociais.

Lembro de uma professora de fundamental ter chamado meus pais a uma reunião na direção do colégio para dizer que meu atraso e desemprenho ruim eram fruto de falta de interesse, aparentemente eu “não queria prestar atenção”. Esse e outros rótulos foram moldando a minha visão sobre mim, sobre minha capacidade, desde criança. Minando minha autonomia e autoestima, me fazendo sentir como uma barata cascuda que precisava passar despercebida dentro de um cômodo para não ser pisada. Porém, meu baixo rendimento não foi empecilho para consegui ingressar em todas as federais de Pernambuco. Nunca concluí nenhum dos cursos superiores. Passei em alguns técnicos e tecnólogos, e era o mesmo do mesmo. Para todos os efeitos isso era fruto do meu desleixo, falta de motivação e de “querer”. A frustração me perseguia como um cão atrás de uma moto numa rua de barro. A dor do fracasso e medo de julgamentos me fez fechar as portas para vida e para qualquer interação social duradoura.

A sensação de falha, a dor de não poder corresponder às expectativas, tiraram a minha alegria de viver por muitos anos. Com vinte e oito anos comecei mais um tratamento psicológico na tentativa repetitiva e esperançosa de conseguir manter uma vida normal e um emprego que me fazia feliz. A profissional que me atendeu é o que chamo de “quase-fada azul”. Me avaliou minuciosamente antes de me falar algo sobre TDAH. Me pediu que fosse à uma psiquiatra e o diagnóstico foi confirmado. Iniciei o tratamento para o TDAH e TAG e logo no primeiro mês a mudança foi gritante até para mim que costumo não atentar para muita coisa. Meu rendimento no trabalho mudou, a minha comunicação ficou mais clara, reduzi a minha hiperatividade, perdi peso, pois descontava a frustração na alimentação. E estou dando continuidade com meu EAD, aos trancos, mas indo adiante.

Algumas lembranças e situações que vivi por conta da falta de diagnóstico e empatia ecoam de forma diferente para mim hoje. No decorrer da vida tive mais psicólogos e psiquiatras que amigos. Meu manejo social sempre foi algo caótico. Fui diagnosticada com TAG, depressão, fobia social, agora fobia, depressão ansiosa, pânico. Escutei certa vez de uma profissional de saúde que era socialmente incompetente. Hoje, durante o tratamento e acompanhamento, me veem em mente muitas lembranças de situações e acontecimentos infelizes que ocorreram durante esses anos sem diagnóstico assertivo que tratasse a causa central que abarcava todas as comorbidades que fui diagnosticada anteriormente. Às vezes penso que só bastava uma pessoa que conseguisse enxergar aquilo que maioria via como “personalidade”, jeito. Se tivesse sido tratada desde cedo vai saber onde estaria agora. O quanto de dor que poderia ter sido poupada e poupado os outros. Mas não há como retornar ao passado, não há nenhuma justiça para nada do que me ocorreu que não seja viver, continuar indo em frente, mesmo que com um pouco de medo do futuro, de não conseguir manter as coisas estáveis.

Sempre estive em uma grande ladeira numa carroça sem freio onde o cavalo desgovernado era eu. Hoje, sinto que consigo reger a vida com menos sofrimento, de forma menos custosa e cansativa. No meio disso tem o fato de que sou uma mulher de vinte e oito anos que precisa corresponder com as expectativas de uma sociedade que é medida e mensura valor pelo retorno, pela produtividade. Isso me angustia alguns dias em que não consigo ter um rendimento aceitável. Me cobro, me imponho metas, me torço, rezo, mas não há uma fórmula milagrosa que me faça virar um “menino de verdade” que nem o Pinóquio. Não há uma fada madrinha que me faça ver a vida de uma forma mais leve, menos caótica, acelerada, milagrosamente “normal”. E cá pra nós, o que é ser normal no mundo de hoje?

Manter meu emprego e saúde mental estáveis é o meu maior desafio. Brinco que preciso trabalhar para custear o tratamento para conseguir trabalhar. É essa a realidade, um diagnostico não é tudo se você não tem condições de manter a medicação em dia. Os remédios não me tornaram melhor, mas me ajudaram a conseguir reger de alguma forma mais presente a vida. Não existe pausa e reabilitação quando você precisa atender expectativas de uma sociedade que trata a empatia de uma forma tão bela num texto de internet ou numa homilia, mas que no correr dos dias passa por cima de tudo como uma retroescavadeira dirigida por um macaco bêbado. Não adianta você dar seu melhor ou trabalhar até sentir dor nos ossos ou tentar se ajustar a ponto de não se reconhecer mais como um ser humano se não há suporte, apoio e compreensão mínima.

Sempre fui o meu pior crítico. Minha visão ao meu respeito é mais cruel do que qualquer coisa que me fizeram durante todos esses anos. Não enxergava beleza, competência, inteligência, capacidade, talento. Hoje tento reaver todos os espaços em branco do meu passado, do meu futuro, no presente, de olhos abertos, mas ainda com um pé na lua. É assim que sou. É assim que aprendi a aceitar que o que tenho não me define, mas vez ou outra me rege. A minha orquestra do desassossego compõe belas canções que aos poucos aprendo a escutar e também a compor.

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Isabella Luiz é roteirista, copywriter, escritora na surdina, prolixa até dormindo, redundante e Recifense. Editora da Fale com Elas. Tem poesias em coletâneas publicadas no Brasil e em Portugal e um livro medíocre em andamento.

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Celina
Fale com Elas

"Writer". Nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Revista Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.