Esquerda festiva

Camille Perissé
Fale com Elas
Published in
3 min readApr 26, 2019
Piet Grobler

Hassam entrou no táxi e sentou no banco da frente. Já estava um pouco tonto. Atrás, Larissa só se importava com o cheiro de suor que podia impregnar o carro, além de calcular as horas de sono que teria esta noite. A voz dele preenche o zumbido do silêncio.

— Isso tudo que a gente faz, essa festa toda, fico pensando, é o que chamamos de resistência?

Ele olha para o motorista.

— Por exemplo, você já deve ter trocado uma resistência queimada num chuveiro elétrico, né.

— Meu chuveiro é a gás, senhor. Mas sei qual é.

— Então, é uma tristeza quando queima. Estamos no meio do conforto e, de repente... Depois que tira pra trocar, você vê como ela fica assimétrica, desmilinguida. Tudo por ter produzido calor demais. Ou por faltar água, isso eu já vi também. De qualquer maneira, mesmo que dure muito tempo, uma hora ela se rompe. Não sei. Pode parecer papo de bêbado, mas veja: essa palavra agora tá na moda. Resistência. Nosso pessoal tem orgulho e medo de dizer. Enquanto nós dois estávamos lá, cantando a plenos pulmões, o mestre da bateria pegava o microfone de quando em quando e afirmava que esse ano não teve verba. Isso exaltava ainda mais os ânimos. Os punhos de todo mundo continuavam erguidos, agora os cantos emendados em brados, tanto faz. Só importava que era grande, era coletivo. Estávamos na resistência. Eles diziam “Graças a vocês estamos aqui. A gente faz cultura, a gente se autofinancia”. Solidariedade, sentimentos nobres. Por um momento olhei a multidão colorida, olhei a mim mesmo e me senti como uma das vísceras de uma minhoca. Meio psicodélico isso. “Todos juntos somos minhoca”.
Mas esse insight já me ocorreu outras vezes antes. Agora cá estamos. É sempre assim. Depois, percebo o quanto, naquele breve êxtase, nós perdemos contato com a realidade vendo uma centelha de utopia. Por vezes penso se a resistência tem alguma utilidade. No caso do banheiro, é claro que tem. Ela faz a proeza de esquentar água, misturar dois elementos contraditórios. Mas o chuveiro cumpriria muito bem sua função sem ela, na verdade, inclusive, isso pode ser considerado um capricho moderno. A água não sofre grande transformação, não muda sua essência, e segue a correr gelada pelos canos. A resistência não dura. O gás, solução anacrônica, nesse aspecto é muito mais eficiente. Aliás, agora com o ar ligado, vejo como a gente tava fervendo lá, quase que queimamos. Não consigo nem imaginar como você aguentou tantas horas, Lari. Que doideira.

Larissa, recostada, abre os olhos e mira uma manchinha marrom no estofado. Não conseguiria dormir esta noite.

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Camille Perissé
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Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros