Despertencer

Yasmin Chinelato
Fale com Elas
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2 min readSep 28, 2020
Imagem: daqui

I

Gotas de chuva contra a janela. O giro infinito do ventilador de teto. Toda escrita é autobiográfica. Toda biografia tem um pouco de ficção. Toda ficção, um fundo de verdade.

Cenas.

Não falo mais sobre você. Aos seus olhos cabem um olhar que não reconheço. Aos seus lábios, um sorriso amarelo, uma ou outra palavra vazia. A sua pessoa, um personagem que não reconheço, ao qual sequer consigo atribuir traços. A memória que acesso não é uma memória, mas um conjunto de memórias, acontecimentos emaranhados que me levam de volta a você.

Você e os cacos de vidro e as inúmeras vezes que escrevi sobre eles. Pedaços quebrados de confiança. Estilhaços cômodo adentro, passivo-agressivamente repousando sobre os lençóis — que já não lembro se eram brancos demais.

A desordem, vozes alteradas, palavras tão cortantes quanto os estilhaços. Ninguém fala da espera. Se fosse um filme, cortariam diretamente para a cena em que você reaparece, braços costurados. Ou quando dramaticamente empacoto meus pertences e vou embora. Uma melodia triste como trilha sonora. Não é assim que acontece. Mas em angustiantes horas não dormidas, minutos, milésimos de segundos, potencializados pelo excesso de adrenalina injetada à situação.

Você e a bicicleta roubada, a confusão e as explicações que tive que elaborar sozinha. Porque seus olhos eram olhos que não te pertenciam, porque eram olhos que se dilatavam e fechavam buscando resgatar algum resto puro de sanidade perdido no interior. E que se abriam às vezes, tímidos e promissores, apoiados em uma ideia de pertencer a qualquer outro lugar que não ali.

Mas não falo mais sobre você. Falo antes sobre poder me desamarrar de você. Sobre te encontrar mal vestido, com o prato sobre a mesa em que jantávamos juntos e não sentir nada. Sobre recolher os lençóis — talvez de um amarelo pálido ou azul bebê? — e colocar o colchão grande demais na traseira suja da caminhonete, dividindo espaço com peças desmontadas de móveis e caixas de papelão transbordando memórias rumo a algum lugar longe demais.

A memória que resgato não é você, mas ir embora de você. O ponto final de uma narrativa cheia de tropeços. Histórias. Contadas, depois, às páginas dos cadernos sob diferentes pontos de vista. Ou confidenciadas aos ouvidos de outros amantes, pernas entrelaçadas sobre o colchão.

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