Eu era feliz e não sabia…

Letícia Magalhães
Fale com Elas
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3 min readMay 17, 2021

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Arquivo pessoal da autora, 2006

Durante a pandemia, não foram poucas as vezes em que me peguei pensando no passado, rememorando os anos que ficaram para trás, com carinho.

Lembrei-me de quando era criança, quando as notícias não surgiam em notificações na tela do celular um minuto após ocorrerem, quando a maior frustração vinha ao ligar a televisão e o desenho ser repetido.

Lembrei-me dos anos em que estudei à tarde numa escola pequena, quando o maior problema que tínhamos a resolver era quem ia sentar na primeira carteira, quando eu comi o melhor bolo de chocolate de todos os tempos em um recreio especial, quando tinha professores incríveis e colegas dos quais me afastei com o passar dos anos.

Lembrei-me da prova que fiz para conseguir uma bolsa de estudos no ensino médio, após ver uma maratona do meu desenho favorito pela tarde. Naquela noite, era o capítulo final da novela das oito, e uma professora veio triunfante à sala contar para quem aplicava a prova qual personagem era o assassino.

Lembrei-me de viajar para Águas de Lindoia, Campos do Jordão, São Lourenço, e andar por aquelas ruas, parques e balneários.

Lembrei-me de ler livros clássicos no ensino médio, de me sentir tocada por “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de achar toda a criação dos heterônimos de Fernando Pessoa um negócio muito louco, de falarmos algo sobre Carmen Miranda justamente no dia em que ela completaria 100 anos.

Parei um momento minha viagem nostálgica. Pensei novamente naqueles velhos tempos.

Naqueles anos da infância, sofria na Educação Física. Naqueles anos estudando de tarde, conheci o bullying. Aquela prova para bolsa me levou para um dos piores momentos da minha vida. Quando viajei com a minha mãe para aquelas cidades, contava os dias e as horas para voltar para casa. No Ensino Médio, eu fiz uma contagem regressiva para as férias, todas as noites ia dormir torcendo para não despertar e, quando acordava, ficava chateada por continuar viva e tendo de ir à escola.

Claro, lembrei-me também dos dissabores. Nos piores momentos, lembrei-me dos sofrimentos e os revivi, lembrei-me das bobagens que fiz e desejei poder consertá-las, lembrei-me de coisas que ouvi e que me magoaram, e de novo fiquei magoada, pensei finalmente em argumentos para ganhar discussões que aconteceram mais de dez anos atrás.

Era natural que, num momento de crise como a pandemia, eu e tantas outras pessoas nos apegássemos ao passado e disséssemos: “eu era feliz e não sabia!” Mas eu não era feliz. Em muitos daqueles momentos, se me perguntassem, eu diria que eu era qualquer coisa, menos feliz. Mesmo assim, lembrei-me primeiro do meu passado com saudosismo — talvez porque estamos num presente tão incerto, rumando, quem sobreviver, a um futuro tão incerto e desafiador quanto o presente. Tudo o que tenho, tudo o que temos, de concreto é o passado.

O que essa rememoração toda pode ensinar? Não precisaria ensinar nada, porque isso não é uma fábula para exigir uma moral da história. Mas talvez a experiência ensine algumas coisas. Talvez ensine que o saudosismo é perigoso, que a memória nos prega peças: aqueles “bons e velhos tempos” podem ter sido bons para você e péssimos para outras pessoas, ou podem nem ter sido tão bons assim para você. Ou talvez ensine que, mesmo naqueles momentos horríveis, aconteceram coisas boas, e elas talvez permaneçam na memória com mais força.

Nem tudo eram flores. Nem tudo merecia essa palavra bonita, que só existe na língua portuguesa: saudade.

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