Uma história absurda

Da série violências diárias contra a mulher

Camille Perissé
Fale com Elas
2 min readSep 7, 2018

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Wani limpava lá em casa, na minha mãe. Gostava dela e de sua falação no celular; admirava de onde tirava tanta amiga e tanta coisa pra contar, fazendo a faxina, tudo ao mesmo tempo. Há que se dizer: uma pessoa solar.

Certo dia, a ouvi falar do seu ex-marido. Feito o ser mais nojento do planeta, pior que verme saído da pior disenteria. Então, resolvi me meter, depois do último áudio gravado que ela enviou à amiga, e perguntei se a coisa era o pai do Anderson. Ela disse que sim, e lá veio história.

Periferia de São Paulo. Embriaguez. Gravidez. Abusos. Cárcere privado. Afastamento de todas as amigas. Vigilância e perseguição. Gritaria. Choro. E os vizinhos? Silêncio. Medo. Sem denúncias. Depressão. Só não teve tapa ou soco na cara porque, Wani me enfatizou: era mulher que sabia impor limites. Isso, ele ia ver, que teria volta. Por menos, já jogou peça de porcelana bem rente ao ouvido dele. Mas a atual mulher, não. Com certeza, apanha.

Enquanto isso, tirava do forno mais biscoitinhos amanteigados, mas meu estômago já estava embrulhado. E aí? Como você conseguiu se safar dessa? Wani continuou a narrar, de boca cheia, seu planejamento e execução da fuga na qual, num primeiro momento, não daria pra incluir Anderson. Na casa trancada, um túnel foi cavado debaixo da churrasqueira. Onde ia parar, não sabia. Nessa hora, a água fervente já apitava e foi preciso segurar o suspense por uns instantes, enquanto passava o café. E o buraco acabou dando num lixão. Lugar perfeito pra arranjar disfarces, segundo ela. Por isso, o homem-verme nunca pôde farejar seu rastro.

Depois de muito viajar em caminhão de lixo, fez amizade com uma senhora que levava encomendas pro nosso Estado. Foi assim que veio parar aqui, na Vila São João. “A vida pode ser boa”, a diarista sorri, “e podemos reconquistar tudo do zero”. Algumas pessoas da família ajudaram, também a graça divina, a recuperar o menino. E assim foi.

Depois de retomar o fôlego, fiquei pensando em como, por trás de pessoas tão vivas, sempre há histórias de quase-morte. É só ousar fazer uma pergunta, uma vez que se tenha a oportunidade de desfrutar da companhia delas na cozinha.

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Camille Perissé
Fale com Elas

Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros