Fumiê, minha boneca japonesa
O anúncio era claro: “2 hóspedes”. Era o que eu estava disposta a receber, naquele janeiro, em troca de fazer algum dinheiro extra.
DIA 1
Passado um pouco do meio-dia de quarta-feira, o interfone anunciou Cláudia e Miguel, mas, quando abri a porta, estavam: Cláudia, Miguel e Fumiê (ou Miezinha, como, em breve, eu iria chamá-la).
Fumiê era uma senhora de olhos puxados que devia ter seus quase 70 anos e metade do meu tamanho. Cláudia e Miguel eram um casal com seus 35 anos cada.
Entre oi’s e apresentações, Cláudia, grávida de seis meses, disparou: “Eu trouxe uma prima, a Fumiê, mas é rapidinho, ela já vai”.
Eu, um pouco confusa, disse que tudo bem e apresentei-lhes o quarto onde passariam os próximos quatro dias.
Expliquei o funcionamento da casa, as recomendações sobre o lixo reciclável, fechar bem as janelas quando saíssem e, também, as torneiras, porque eu precisava trocar as borrachinhas.
Cuidado com as maçanetas que estavam todas um pouco soltas, mostrei que a torneira da cozinha abria pra cima e pedi que, em hipótese alguma, deixassem bater as portas, porque Pantufa, a cachorra, tinha medo. Cláudia, Miguel e Fumiê ouviam com atenção.
“Eu tenho um banho e tosa”, Fumiê disparou num português truncado e Miguel me contou que ela morou muito tempo no Japão e que, por isso, falava mal.
Sorri e finalizei o discurso de anfitriã com a frase habitual: “bom, então é isso, fiquem à vontade, qualquer dúvida, me chamem” e, quando estava prestes a deixar o quarto, Cláudia emendou num mineirês nervoso: “Ô Vanessa, deixa eu te perguntar, a minha prima pode ficar aqui com a gente? Porque ela vai ficar longe e nós vamos embora no domingo e aí fica mais fácil pra ela ir pra rodoviária com a gente e…”.
Interrompi. Disse que não, afinal, o anúncio era para duas pessoas e eu sequer tinha um colchão extra para acomodar três.
“Mas não precisa! A gente dorme tudo aqui ó”, Cláudia disse, alisando a cama de casal que, se já era pequena, agora encolhera de vez.
“E a gente paga a diária dela à parte”, Miguel complementou confiante, mas não era esse o combinado. Climão.
Fumiê me olhou com um olhar piedoso e, para não amolecer, evitei o contato visual. Foco em Cláudia.
Reforcei que ficariam os três desconfortáveis, dormindo empoleirados por quatro dias, e ela me corrigiu; explicou melhor: não seriam todos os dias. Fumiê precisaria ficar apenas do sábado para o domingo, pois já tinha hospedagem reservada em outro apartamento, mais distante.
Pensei um pouco e voltei aos olhos de Fumiê. “Ok, de sábado para domingo, ok”.
DIA 2
Na noite seguinte, climão desfeito, encontrei Cláudia e Miguel na sacada. Perguntei se vieram à cidade a passeio ou trabalho.
“Trabalho”, disseram. “Nós trabalhamos com uma tecnologia nova”, e me mostraram o pulso com uma pulseira emborrachada que parecia um relógio esportivo sem ponteiros. “A celebridade X não tira do braço, você conhece?”.
Não. Eu disse que não conhecia e, na próxima hora, minha sacada se transformaria num workshop sobre o produto: os benefícios da tal pulseira eram mil. A saúde melhora, a diabetes some, a disposição aumenta. Com ela, quem é cego, enxerga e quem não levanta, anda.
Disseram que a tecnologia vinha em formato de pulseira, palmilha, anel, joia, máscara para dormir. Trouxeram do quarto uma mala e me mostraram tudo. Me mostraram também um bastão de pouco mais de cinco centímetros que, Cláudia me disse, era um filtro. “Bota ele na água e a água fica mais água. Bota na cerveja, a cerveja vira chopp, bota em cima do cigarro e a química quase some”. Quase.
“Pega lá um limão pra eu mostrar pra ela, Miguel!”. Eu disse que não precisava. “Precisa sim, a gente corta o limão no meio e coloca a pulseira em cima de uma das metades. Você vai ver como ele fica mais doce”. Eu disse que acreditava e que o limão não era necessário.
Miguel decidiu, então, me mostrar o poder da pulseira num teste. Pediu pra eu levantar, cruzar as mãos ao longo do corpo, na lateral: “Eu vou me pendurar em você”.
Resisti. Ele insistiu. Ok, fiz a posição, ele se pendurou e eu quase caí. “Agora bota a pulseira”. Botei a pulseira. Ele refez o teste e eu quase não caí. Quase.
Cética, disse-me impressionada para acabar logo com as demonstrações, mas não adiantou.
Mais cedo, eu havia reclamado de dor nos pés. Cláudia se lembrou: “Você está com dor nos pés, não está? Coloque os pés sobre a palmilha!”, e foi só aí que eu, finalmente, decidi perguntar que raios de tecnologia era aquela.
“Meteoro!”, Cláudia disse, empolgada com toda a seriedade que lhe cabia, como se me desse uma revelação.
“Meteoro?”, repeti retórica, dando margem para me contarem que, dentro de cada produto daqueles, existiam pedras de meteoros capazes de maravilhas.
Enquanto me explicavam como os japoneses resgatam meteoros para transformar em pulseiras, eu, sem me dar conta, já estava sentada, com os pés sobre as palmilhas — Cláudia e Miguel na audiência do milagre que eu estava prestes a performar.
No momento em que eu sentia absolutamente nada além da autopercepção que se traduzia no pensamento “MAS O QUE É QUE EU ESTOU FAZENDO?”, me contaram que a avó da Cláudia tomava 42 remédios por dia e que, com a pulseira, passou a tomar só um.
“Tinha artrite, artrose, reumatismo, bursite… Agora, só tem um problema na tireoide”. Disseram que, por isso, toda a família agora vende os tais produtos, inclusive, Miezinha, a Fumiê.
“Bom, pessoal, o papo tá bom, mas acho que vou tomar um banho e descansar um pouco”, eu disse, afastando os pés da palmilha.
“Sentiu algo?”, Cláudia perguntou, ansiosa.
Enrolei um pouco: “humm, talvez não tenha ficado tempo o suficiente…”. Não queria desapontá-la, afinal.
“Sim, é verdade, precisaria de mais tempo”, concordaram.
DIA 3
De manhã, saí do quarto quando o casal já havia deixado o apartamento, rumo à convenção para a qual vieram à cidade.
Sobre a mesa da cozinha, uma pulseira meteórica e um bilhetinho: “Letícia, use até domingo e me diga o que achou”.
“Não custa experimentar”, pensei.
À noite, quando voltei para casa, encontrei os dois novamente na sacada.
“Está usando a pulseirinha?”.
“Estou, Cláudia”, disse, exibindo o pulso esquerdo.
“Sente-se bem?”.
“Não estava com nenhuma queixa particular hoje, então, estou me sentindo normal. Obrigada”, respondi, complementando que tinha trabalho a fazer e que estaria no quarto.
Ao que eu me afastava, Miguel falou mais alto: “pode tomar banho com ela, viu? Não precisa tirar pra nada!”.
DIA 4
Chegara o dia em que Fumiê dormiria em casa com Cláudia e Miguel. No sábado, saí de manhã muito cedo e, quando voltei, a encontrei na portaria.
Tinha no braço uma pulseirinha igual a minha, só que cor-de-rosa, reparei.
Subimos juntas e ela me contou que, naquela noite, a empresa para a qual vendiam os acessórios daria uma grande festa para encerrar a semana de trabalho.
“Que ótimo!”, eu disse. “Mas não sei o que fazer com o meu cabelo”, ela falou, muito chateada, ainda no elevador. “Não se preocupe, vamos dar um jeito”, respondi, mais solícita que o normal.
Por alguma razão, Miezinha me comovia. Tinha os cabelos muito ralos e uma calvice iminente. Cláudia insistia em fazer nela um topete, mas, com tão pouco cabelo, o cocuruto não crescia.
Perguntei se eu poderia tentar algo. Miê não se opôs. Sentei atrás dela e ela, já tão minúscula, ficou ainda menor. Parecia uma boneca. “Fumiê, minha boneca japonesa”, pensei.
Comigo no comando do penteado, Cláudia foi cuidar da própria produção. Passei a chapinha nos cabelinhos arrepiados da senhorinha, na frente e nos lados. Depois, laquê.
Enquanto eu a penteava, Miê me contou que tinha duas mães. Chamou o fato de uma “curiosidade” sobre si. Disse que a tia dela não podia ter filhos e que a sua mãe biológica já tinha muitos quando lhe deu à luz, daí a ideia de entregá-la. Achei, de fato, curioso.
Depois, repetiu que tinha um “banho e tosa”, mas que estava indo muito bem vendendo os meteoros. Me perguntou: “você não quer vender também?”. Eu disse que não. “Mas nem se você sentir os benefícios?”, me perguntou com os olhinhos piedosos. Vencendo a minha falta de crença, respondi: “se for o caso, eu repasso o seu telefone e você vende”. Ela sorriu e agradeceu.
Torci as laterais do fino cabelo de Miê e prendi num coque médio, com poucos grampos. Ela gostou.
Perguntei se queria ajuda na maquiagem, torcendo para ela dizer que sim, mas não. Essa ela mesma faria, porque tinha mais prática com os olhos puxados.
Às quatro da tarde, todos se encontravam orgulhosamente prontos: Miguel, de gravata borboleta; Cláudia, com os olhos mestiços muito marcados e um vestido longo, incomodada com a rasteirinha necessária para suportar o peso da barriga; Miezinha, com o coque de minha autoria e um vestido preto comprido que, ela insistia em dizer, não usava desde 2010.
“Está linda, Miezinha, arrasa”, eu disse, um pouco empolgada além da conta, reconheço.
No dia seguinte, eu não os veria mais porque iriam embora dali algumas horas, ainda naquela madrugada. Voltariam ao apartamento apenas para buscar as malas.
À noite, então, antes de dormir, tirei a pulseira emprestada e deixei na maçaneta da porta do quarto dos três, sem notar os benefícios da nova tecnologia.
“Talvez eu precisasse mesmo de mais tempo”, pensei, ou, talvez, sem perceber, eu agora seja a metade mais doce de um limão.
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