Memórias inventadas #2
Acreditava estar satisfeita ali com as crianças. Não importava muito se já brotavam duas pequenas saliências em minha camiseta, me sentia apta a brincar com as pequenas — ao mesmo tempo em que ficava compadecida de seus pequenos dramas de forma que nenhuma gente grande era capaz. Os papéis de mamãe e filhinha, vilões e heroínas, os movimentos de arrumação dos bonecos e as vozes impostadas sem nenhuma vergonha fluíam, de maneira harmônica, fazendo do chão do quarto uma bagunça colorida que exalava prazer.
Quase de repente, já chegou a hora das visitas partirem. Foi tão rápido que mal pude assimilar: vultos de pernas femininos aparecem na porta, crianças erguidas ao ar, o barulho dos zíperes das bolsas tomam o das imitações de vozes, e me vi a sós com o vento dos últimos entra-e-sai do quarto.
Veio alguém me apressar. No entanto, não estava triste pelo suposto abandono. Apenas queria me manter estática, ali, apreciando a calmaria e o silêncio para, então, voltar a conduzir as brincadeiras ao meu modo. A próxima aventura seria a preferida: caça ao tesouro.
Ouvi a voz de minha mãe: “Filha, já vamos sair, hein, anda logo”. Seguida de: “Pega sua bolsa!” — voz que já se tornava coro, engrossando — “Você já tá arrumada, não falta mais nada, vamos trancar o portão, a caminhonete já está lá fora”. Uma crescente imobilização e cegueira ia me apoderando à medida que as vozes se tornavam mais altas e ásperas. Todas aquelas situações odiosas num instante se acumulavam, a resistência era agarrar-me aos segundos restantes no quarto, ao esquecimento de algo importante, sempre urgente, que deveria levar comigo. Mas todos os objetos escapavam entre os dedos.
Onde estaria? Era um livro, com certeza, mas qual o título mesmo? Procurei no fundo das bolsas, na mochila da escola, e eis que um braço peludo me puxa pra fora daquela concha. Meu pai agora avançava em seu último recurso de autoridade: Para a caminhonete, já.
Discutimos longamente. Não lembro as palavras exatas, mas o timbre, os formatos das letras e sua textura difícil ficaram encravadas na memória, como se não pudessem escorrer. Algo por terminar com: “Olha que eu te deixo aqui, no meio da estrada!” “Vai, deixa! Abre a porta.”
O veículo deu uma freada brusca. Mamãe soltou um protesto tímido com a boca dura e olhou de soslaio para trás, tentando convencer-se de que uma cria sua não teria coragem de ir além do limite que ela própria jamais ousou cruzar.
Abri a porta. As cantadas dos pneus foram tão estridentes que pareceram ter apagado ali toda a discussão. E, talvez, por pura inércia, meu corpo em movimento continuou o que tinha iniciado a fazer, ignorando a desaceleração desesperada do outro corpo motorizado. Não havia como voltar atrás, eu já não pertencia àquela massa de lata cinza. Quanto mais ela seguia avante marcando um rastro na terra, mais eu rolava para trás, e menos sentia o impacto, poeira e lama.
A física provou, a partir daquele momento, uma lei da minha natureza: meu lugar não é do lado de dentro nem fora; meu movimento padrão, pela inércia, é parar ou deslizar.