Memórias inventadas #1
Vez ou outra penso que nunca mais outros bichos saberão o que se passa comigo como aquelas cachorras sabiam. Pode ser sensação falsa, já que a mente é capaz de embaralhar as coisas ao ponto de termos certeza de que o depois veio antes. Mas tenho por mim que foi exatamente nessa ordem, e que não há de ser coincidência:
Um dia, no colégio, era hora da entrada e o pátio estava uma confusão, naturalmente. Nenhuma turma tinha formado fila ainda, então era cada um à procura da sua, pela lei da atração espontânea. Em corridas labirínticas, estava com Ana pendurada a mim, e como isso não fosse novidade, a brincadeira só valeu mesmo quando encontramos o elemento estranho a dar um sentido qualquer: era Juliano, o esquisitão, de braços erguidos à frente e andando a esmo. Parei, chocada, diante dele e bradei a plenos pulmões: “Juliano é um zumbi! Socorro!”
Eu e Ana saímos correndo em círculos, do concreto pro cimento queimado, da terra pro canteiro do jardim. Enquanto isso, Juliano andava a passos largos pra nos pegar, seus braços a esbarrarem em tudo, mas também a guiá-lo como uma vareta de cego. Certa hora, ele fez uma aparição na minha frente, me encurralando. Ao gritar: “Zumbi!” novamente, não pude ver nem ouvir mais nada; o golpe da sua mão bem na boca do meu estômago me fez parar de respirar. A fila já se formava e assim fui, com as costas arqueadas, até meu lugar, sem concluir direito se foi divertido enquanto durou.
A vida seguiu sem que tentasse entender lógica em Juliano. Um outro dia, lembro dele lá em casa, alguns centímetros mais alto, talvez. Nossas mães, vizinhas, devem ter combinado um revezamento na tomada de conta. Aí que entram as cachorras. Elas transitavam por baixo da rede em que estava Juliano e eu as aticei numa vaidade de me mostrar íntima das selvagens. Pra lá e pra cá, da garagem à varanda. Uma delas, a mais filhote, foi amarrada à uma cadeira pra não causar mais tumulto.
Meu amigo também quis captar a atenção das peludas: se levantou da rede num movimento festivo, só que em menos de um minuto já estava derrubado no chão, os joelhos sangrando. A cadeira voando com a força de uma cachorra o atingiu em cheio. Minha mãe sentiu a rasteira que não podia deixar acontecer no filho dos outros e tenho certeza que o episódio lhe ficou encravado na memória. Mas enquanto pobre criatura infante, não cheguei a alcançar nível algum de culpa, algo sempre me disse que elas tinham ciência do que ocorrera tempos antes na escola, e esse falso acidente não passou de um movimento de justiça com as próprias patas.
Quer receber mais textos como esse? Siga nossa publicação, fale sobre elas e compartilhe!
Nossa Página no Facebook: Fale com Elas
Nosso Instagram: @falecomelas
Nosso Twitter: falecomelass
Acompanha a Fale com Elas e quer escrever com a gente? Manda um email pra falecomelasesobreelas@gmail.com.
Aceitamos contos, crônicas, entrevistas, resenhas literárias, cinematográficas, textos de opinião. Conteúdo feito por mulheres para quem quiser escutá-las!
Conheça nosso grupo de integração entre Autoras e Leitoras da Fale com Elas! Mande sua solicitação para entrar!