Minha jornada com o Burnout

Julia M.
Fale com Elas
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6 min readMay 23, 2024

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bella, a gata, dormindo como a princesa que ela é

Síndrome de Burnout é um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastantes que demandam muita responsabilidade.

Entrei no ramo de tecnologia aos 21 anos de idade. Logo comecei a viajar e realizar implantações complexas de sistemas hospitalares, indo a reuniões, dormindo em hotéis três estrelas, comendo fast food sempre que podia, acordado junto ao sol e indo dormir quando oportuno. Muitas horas extras, configurações a serem realizadas após o horário, reuniões tensas com clientes desgostosos e sem a maturidade para lidar com esse mundo.

Aos 22 anos de minha vida surgiu a pandemia. Logo quando finalmente tinha conseguido minha independência financeira. Quando finalmente iria poder sair para bares, shows, botecos e afins. Não, o destino tinha outros planos para o mundo todo. Procurei não me deixar afetar tanto e levar o mundo com certa frieza. Mesmo sabendo que meu irmão tinha problemas de saúde respiratória, meu chefe me pediu para continuar a trabalhar presencialmente. Na minha família sempre fomos ensinados que não dizemos “não” ao trabalho. Então comecei a viajar e trabalhar externamente durante toda a pandemia. Não me orgulho de dizer que não vivi em total isolamento durante esse período. Ia para o cliente às 7h da manhã, saía às 21h, morta de cansada, depois de longas horas em pé realizando treinamentos, muitas vezes no calor, em hospitais públicos sem ventilador, quem dirá ar condicionado. Até mesmo as cadeiras eram contadas, cheguei uma vez a ficar sentada em um banco de madeira feito para crianças. Meus líderes pouco se importavam, o foco era a entrega do resultado, o consumo das horas de projeto e entrega nos processos dentro do planejamento.

Saía dos clientes direto para o bar mais decente aberto durante uma pandemia de saúde, bebia tudo que conseguia beber e que não me causaria uma ressaca terrível no próximo dia. Ia para o hotel e dormia, geralmente perto das 01h da manhã, acordando às 5h do próximo dia e vivendo esse ciclo novamente no dia seguinte. Trabalhei incansavelmente por 2 anos de pandemia. Bebi incansavelmente também. Não quero comentar aqui como era meu deslocamento até chegar ao cliente. Tópico sensível. Talvez em outro texto. Aos 23 anos, perto de completar 24, já dava sinais iniciais de um possível problema de saúde. Comecei a ter esquecimentos. Tão recorrentes e notáveis que as pessoas que estavam trabalhando comigo começaram a perceber e comentar. Tudo eu perdia, esquecia onde estava; chaves, carteira, celular, roupas etc.

Iniciava uma frase e a perdia no meio do caminho, sem lembrar mais nem do que estava falando, qual era o assunto. Perdia completamente o fio da meada. Por várias vezes fui motivo de risada ao trocar palavras. Ventilador virava Elevador, Paciente virava Passageiro, Andreza virava Amanda. E tudo saía de dentro de mim sem eu mesma me dar conta, as pessoas ao redor que me corrigiam. Comecei a não sentir fome, mal comer nas refeições, a comida parecia borracha, tinha nojo de tudo e comer de repente se tornou uma obrigação e deixou de ser algo prazeroso de se fazer. Dores de cabeça eram recorrente, todo dia um Dorflex para me ajudar a enfrentar o dia ou para conseguir dormir. Surtos de estresse com os colegas de trabalho. Perdendo a paciência sempre e ao menor sinal de empecilho. Cansaço extremo me dominava. Vivia sempre com sono, querendo sentar ou dormir. Comecei a ter pesadelos e pensamentos ansiosos de morte, perseguição, até mesmo de fantasmas e monstros. A insatisfação com o trabalho nem se fala, sentia uma vontade tão grande de conquistar o meu cargo dos sonhos que poderia até me matar para consegui-lo. Agora sei que nunca iria. Não era meu para consegui-lo, aquele cargo sempre esteve ocupado por outra pessoa. Não por uma mulher negra que mal tinha feito 23 anos.

Foi minha psicóloga que me pediu para buscar ajuda médica e ela teve que insistir por várias vezes até finalmente aceitar que precisava de ajuda. A primeira consulta foi com uma neurologista, que desconfiou que tinha TDAH. Uma ressonância depois mostrou que não tinha nenhuma alteração no meu cérebro que indicasse. Procurei então uma clínica médica, talvez fosse falta de alguma vitamina ou hormônio. Mas não era, tudo estava nos conformes, talvez ali por uma alteração no colesterol, uma baixa de vitamina D. Foi aí então que entreguei as cartas e tive que aceitar. Meu problema era psicológico. Tive que procurar um psiquiatra. Passei por dois médicos diferentes até finalmente chegar ao diagnóstico de Síndrome de Burnout. Comecei a tomar medicação. Continuei minha terapia. Mudei de emprego para um home office e comecei a morar sozinha. Nada de viajar, agora eu trabalhava de casa. Tinha todo tempo do mundo para descansar, para dormir as horas de sono que tinha perdido. Para sair para lugares que nunca tinha ido. Conhecia mais lugares fora do meu estado do que os do meu bairro. Achei que finalmente fosse começar a ter alguma melhora.

Mal sabia eu que era apenas o começo de uma longa jornada. Piorei muito. Tive muitas crises de choro, pensamentos suicidas, podia dormir por 20h seguidas e continuava cansada, não sentia fome, o desejo de levantar da cama era zero. Passei a não comer, a não tomar banho, não sair da cama e sair da casa era praticamente impossível. Chorava quase todo dia porque não sentia mais vontade, capacidade ou energia para fazer absolutamente nada. Achei que nunca mais fosse voltar a ser eu mesma, que nunca mais fosse ser capaz de fazer algo novamente. Foi horrível. Mas não estive sozinha. Eu nunca estive sozinha. Apesar da sensação de estar só, ser não compreendida e não poder contar com ninguém tomasse conta de mim em mais dias do que poderia dizer, eu sabia bem lá no fundo que eu não estava só e encontrava forças dentro de mim para continuar. Se não por mim, por aqueles que me amavam.

Sinto que deixei muitas pessoas na mão enquanto estava vivendo essa fase da minha vida. Decepcionei muita gente que gostaria da minha presença mas eu não tinha condições de dar. As pessoas não conseguem entender o quão é difícil sair da cama e logo ficam chateadas quando você deixa de estar com elas porque você sente que precisa dormir. E a culpa de não ter ido à um evento ou local é dominadora também. Queria me desculpar e pedir a compreensão dessas pessoas, mas sinto que ao fazer isso estaria me traindo. Traindo o tempo que precisei para mim, para me recuperar. Seria admitir que fiz algo errado quando a única coisa que fiz foi me priorizar, cuidar de mim e da minha saúde mental. Eu jamais deveria ter que pedir desculpas por isso.

Hoje, aos 26 anos, dois anos de tratamento depois, posso afirmar que me sinto melhor. Ainda tenho dias ruins, onde sair da cama é muito difícil, onde só sinto vontade de deitar por horas e horas a fio sem ter que me mexer, onde os pesadelos vem, me assombram e fazem dormir ser algo assustador, não prazeroso. Tudo isso acontece ainda mas, com certeza, de forma bem menos consistente. De modo que posso ter uma vida ativa, saudável, ser capaz de estar presente na vida das pessoas que amo, no meu trabalho, realizar viagens e conquistar meus sonhos. Fiz e continuo a fazer minha terapia, tomar meus remédios sempre no horário correto. Hoje tomo: um ansiolítico, um estabilizador de humor, um relaxante natural e três tipos de vitaminas diferentes. Todo dia.

Fui começando aos poucos com a medicação, mitigando os efeitos da estafa extrema em meu cérebro. Logo outros sintomas iam aparecendo e enquanto cuidava de um aparecia outro. Melhorei do sono, comecei a ter ansiedade, depois deprimi muito fortemente, por fim meu corpo veio me cobrar os anos sem comer e fiquei com minhas taxas numa loucura só. Sinto que estou chegando ao fim da minha jornada com o Burnout. Onde meu corpo está 100% estável e se preparando para finalmente começar o desmame da medicação. Estou otimista em relação ao futuro e planejando mais e mais coisas para mim. Posso passar o dia fora, sair e voltar para casa sem ter febre emocional no dia seguinte. Sem ter que passar três dias exausta na cama porque para cada dia bom eu tinha três ruins. Posso sair de casa todos os dias, posso fazer academia, comer bem e me relacionar com pessoas normalmente. Hoje posso ser eu mesma por mais tempo.

E amanhã? Bom, amanhã eu vou descobrir ainda. Mas por enquanto é essa minha jornada com o Burnoutinho.

Se você chegou até aqui, muito obrigada! Sou nova no Medium e vou usar dele para ocupar a mente e o tempo com minhas experiências com doenças mentais. Talvez um conto aqui ou ali. Seja bem vinde.

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