O desafio de ser (quase) inteira

Reflexões a partir de On Self-Respect, ensaio de Joan Didion

Taís Bravo
Fale com Elas
Published in
6 min readMar 6, 2017

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Fazem meses e já devia ser natural, mas ainda me espanta: esse momento em que me pego sendo, inteira; esses instantes em que minhas mãos não estão obcecadas em suturar ou desfazer pontos, mas se ocupam de outras coisas, bilhetes únicos, palavras, temperos, eventos…

Outra constatação frequente que, apesar de óbvia, também me desestabiliza: reparo que sou uma mulher adulta.

Aquele dia, as constatações se intercalaram em uma sala de espera cheia de grávidas e eu.

Acho muito estranho toda vez que me dou conta de que tenho idade suficiente para que uma gravidez seja bem vista socialmente, que não estou mais dentro do que as pessoas chamam de gravidez precoce. Me espanta porque essa possibilidade ainda me causa o mesmo pavor. Uma gravidez agora seria igualmente indesejada quanto era aos 17 anos: absolutamente nada mudou.

Sinto esse vão entre eu e algumas mulheres que atravessam meu caminho: podemos compartilhar a mesma idade, mas elas, com suas saias lápis e saltos finos, parecem habitar outro tempo, outras formas e responsabilidades. Eu sei que as estruturas são todas temporárias e, em geral, assumem mais uma função de aparência do que de ordem genuína. No entanto, ainda sinto que essas mulheres devem ter conquistado alguma estabilidade que me falta. Como a Laura Viana descreve perfeitamente nesse ensaio, me sinto uma mulher mal-acabada.

Tenho trabalhado muito essa questão do que significa ser adulta. Tenho esse olhar idealizado das pessoas que estão lá, sendo, enquanto eu estou aqui, ensaiando um começo. Mas isso cada vez mais é uma posição que assumo na melancolia das minhas baldeações quando a ideia de chegar em casa me dá mais uma letargia do que o alívio do descanso. Quando me sinto em falta reparo nessas mulheres e o suposto vão entre nós. Tem sido mais frequente me encontrar na surpresa que abre o texto: ocupada com meus próprios destinos.

Penso, afinal, que ser adulta não tem tanta relação com a fantasia que escolhemos vestir, com os uniformes, espaços e produtos que nos acolhem; mas, sim, com a integridade que lidamos com essas escolhas.

É uma posição em que necessariamente é preciso lidar com cada abandono e cada início e cada término e cada recomeço. É exaustivo e, claro, só lidar não basta. Ainda que frequentemente seja isso que a gente faça: vá empurrando com a barriga em um descuido generalizado com o próprio tempo e vontade.

Ser adulta é só o cansaço. O que tem me interessado é conceber algum tipo de integridade. Esse combo de espantos: ser dona de mim e estar presente em minha vida.

Naquela espera, na ausência de um livro, usei o Pocket para me entreter. Caí em um artigo que li no último dia de 2016: On Self-Respect, da Joan Didion.

Em dezembro, a situação era diferente. Em dezembro, ainda não me pegava assim, sendo, mais do que a mulher, a pessoa que sou. Em dezembro, eu me consumia em busca de respostas. E li o artigo assim, com os olhos treinados de quem precisa de uma conclusão.

Esse jeito afoito é resultado de uma ansiedade que certamente transcende os meus limites individuais, mas também desse mesmo descuido de quem não encara a vida de frente.

Em dezembro, eu só queria que passasse. Eu não aguentava mais lidar com os processos. Eu queria algo que na verdade me fizesse parar, queria estar estática, porque a minha espera — por respostas, pelo fim, pela estabilidade — não se dá placidamente; é um inferno. Mas um inferno que precisava atravessar. Até porque a resposta, até agora, nunca veio.

O que se passou foi estar presente até quando isso significava uma vontade de bater com a cabeça na parede e encontrar meios menos destrutivos de lidar com essa vontade: Às vezes, escrever um poema; às vezes, levar a sério o conceito de Bolo Individual da Fábrica de Bolos da Vó Alzira.

Enfim, no meu desespero, aquele artigo não podia se revelar. Foi preciso o dia 3 de fevereiro, aquela sala de espera, para eu começar a entender:

É o fenômeno às vezes denominado como alienação de si mesmo. Nesse estágio avançado, nós não atendemos mais um telefonema, porque alguém pode querer algo; que nós poderíamos dizer não sem nos afogarmos em uma autorecriminação é uma ideia inconcebível. Cada encontro demanda demais, despedaça nossos nervos, suga nossa vontade e o espectro de algo pequeno como uma carta não respondida gera uma culpa tão desproporcional que nossa sanidade se torna o objeto de especulação de nossos conhecidos. Para dar às cartas não respondidas seus devidos pesos, para nos libertar das expectativas alheias, para nos recuperarmos para nós mesmos— é onde reside o grande e singular poder do autorrespeito. Sem ele, eventualmente, se descobre o final do parafuso: você corre para se encontrar e encontra ninguém em casa”.

O que Joan Didion defende nesse artigo é a importância de cultivar um autorrespeito; uma postura mais franca e íntegra diante de quem somos. Na primeira leitura, achei que o texto tinha um ar moralista, mas depois entendi que o autorrespeito aí não se orienta por uma moral do que é bom ou ruim, mas sim de assumir as próprias escolhas independente de possíveis julgamentos.

A questão que Didion expõe não é uma urgência em ser impávida, um Que Mulherão da Porra que nunca é menos do que gostaria de ser. Não é por aí.

O autorrespeito não se trata de uma vigilância constante para se assegurar que está fazendo o que é correto, é, na verdade, sobre ser honesta com nossos próprios princípios, desejos e limitações.

A partir dessa posição podemos estar presente em nossas vidas — com todas as suas condições, sem uma distinção nítida do que é bom e do que é ruim — em vez de mergulhar em suposições e arrependimentos.

Resumindo assim, parece muito simples, mas é claro que ser realmente franca e se manter leal a si mesma é um tanto complicado. Primeiro porque se conhecer é um risco; no fundo, somos bem mais zuadinhos, complicados e contraditórios do que gostaríamos. Além disso, acredito que escapamos de nós mesmos, nunca vamos ter um domínio completo de nossas vontades e possibilidades. Mas acho que é exatamente aí que reside o argumento de Didion: precisamos ocupar essa casa que sempre será um pouco estranha, mas é nossa.

Começamos a ter com um pouco mais de conforto e autonomia quando nos autorizamos a viver nossa própria história sem tentar pavimentar as falhas ou reformular todas as estruturas com base em comparações e imperativos alheios.

Encontrar a própria voz em meio a tanta ordem e ruído é um desafio. É ainda mais complicado quando o que desejamos parece dissonante com o que esperávamos, quando nossas possibilidades não concordam totalmente com nossos ideais.

Admitir essa vulnerabilidade e descontrole também deve fazer parte de um autorrespeito. Ser inteira, afinal, é não desviar, mas respeitar as falhas e lapsos que me formam; é me autorizar imperfeita e à caminho de algo que só eu posso definir se é de fato um destino. Uma posição morna, com a cabeça nunca exatamente tranquila, mas com uma clareza que só se conquista depois de muitos embates.

Eu quero estar no nível do que é possível, ainda que isso pareça um percurso incessante. É, sem dúvida, mais fácil chafurdar em uma laminha autodepreciativa ou alucinar no ar rarefeito de um pico de arrogância e autocontemplação. No entanto, essas posturas extremas apenas nos jogam em um ciclo inativo e desconfortável. Encontrar esse lugar entre, uma posição que não dá as certezas das extremidades, é terrível e maravilhoso. Se admitir desamparada é a única forma de aprender a dar passos livres da necessidade de um respaldo.

É isso que sigo buscando e às vezes, em alguns domingos de sorte, respiro aliviada, porque sinto que já estou.

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