O menino mudo
Era uma vez um menino mudo.
Essa história é inédita mas muito antiga. Colhi várias versões e os fatos em si são duvidosos. Acho bom começar com uma primeira explicação: a criança não era muda de nascença, mas de querença. No dia certo, escorregou da mãe o menino, e quando cortaram seu cordão umbilical, abriu o berreiro igual a todos os bebês nascidos na época. Seus cinco sentidos em perfeito estado. Aprendeu a engatinhar, andar, correr. E a entender tudo o que falassem com ele. Porém, seus balbucios nunca chegavam a formar sílaba alguma — muito menos palavras, sentenças.
A partir daí, o que sei é que seu pai resolveu levá-lo ao médico quando estava perto da matrícula pra alfabetização. Tinha receio de que essa miséria de fala atrapalhasse os estudos. Não, o menino não é idiota, constatou o doutor. Não fala porque não quer.
Que teimosia! Ajoelharam o menino no milho. O pai puxou o cinto… o trancafiaram no quarto escuro. O menino morreu de medo da noite, mas continuou sem nada a dizer. Com o tempo, parou até mesmo de gritar. As lágrimas, a cada castigo, escorriam em silêncio. O pai e a mãe desistiram: eis um caso perdido. Adotaram uma cachorra e um gato para compensar a decepção.
Além dos bichos, a irmã brincava com ele. E o ajudava na escola. Através dos amigos dela, o menino mudo conheceu o companheirismo, a solidariedade e a compaixão. Pensava que devia ser feliz, pois poderia ter tido sorte pior. Assim o menino provavelmente cresceu com certa ternura, e sei que chegou a falar, em segredo: mã, não.
Era de se supor que o menino sofresse de um mal menor, chamado por uns de timidez, por outros de indecisão. Comentavam que esse aí seria difícil de arranjar namorada. Pois nada, o menino sabia bem usar a boca. Quando cresceu, escolheu uma moça de mãos habilidosas e lá se foi embora com ela. Entregues às sensações mudas.
Aquele silêncio todo não tardou a incomodar. Porém, pouco se sabe sobre suas brigas. Os dois acostumaram seus ouvidos com músicas instrumentais. Até o dia em que o menino conheceu, numa canção, uma voz-menina.
Foi um choque, no bom sentido. O menino não soube o que dizer diante da melodia. Escreveu versos, mas a dona da voz nunca viu, só ouviu dizer. Nela o amor adormecia, e nele se afogava. Sua boca só bebia, bebia. Bebeu tanto que conseguiu fazer seu próprio peito endurecer, e quando finalmente o amor acordou na menina cantante, ele o atirou pra longe como pedrinha na água.
Entre andanças e abandonos, o menino mudo decorou caminhos. Vocês já devem tê-lo visto passar. É como se viesse refugiado do mundo, agraciado com o dom de dirigir. Um carro, uma moto, uma prancha, um submarino — mesmo com medo, mesmo com mar. Ele ainda economiza palavras, mas não equipamentos de proteção. É lindo de ver a suavidade com que o menino se arrisca.
Ouso adivinhar uma fortaleza em sua sobrevivência. Ele espera. Ele mantém guardado um presente, de um ambiente escasso. Parece muito e parece tão pouco. Apesar da delicadeza, quem sabe é um perigo, quem sabe uma última salvação.
O menino mudo me vê por dentro sem encarar meus olhos. Pois isso aprendeu também: um olhar direto pode provocar convulsão na alma. O menino mudo chama alto minha impotência de palavras. Revela essa dor sutil de não adiantar escrever. Sua existência rompe minha falsa coesão enquanto me lembra de que nem dizer todas as frases ou dominar todas as línguas seriam o suficiente pra calar uma criança muda, que teima em esperar, dentro de um ser.
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