O sistema que mata a gentileza

Amanda
Fale com Elas
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4 min readJul 15, 2020

Sobre ser “boazinha” demais para merecer ser parte deste mundo

Ano passado participei do processo seletivo de uma empresa que vendia um produto X (sem exposições, infelizmente).

Fui até a última etapa. Com o psicológico já abalado e minhas inseguranças todas devidamente alimentadas. O mocinho do RH, não muito mais velho que eu e igualmente recém-formado em um curso que oferece pouquíssimo suporte para o início de uma carreira profissional, me fez ouvir durante 45 minutos que eu não era boa o suficiente para o mercado de trabalho. “Você não tem esse perfil, é boazinha demais, talvez você precise mudar isso ou será engolida.” Não juro que foram essas as exatas palavras, mas foi algo assim. A empresa X claramente sabe como motivar seus empregados!

No caminho para casa, a pé e desconsolada, suas palavras desencadearam uma espécia de análise terapêutica sobre todos os pontos que juntos permitem a existência de quem eu sou. E sim, “ser boazinha” é parte desse todo, mas não vejo como e o porquê de insistirem em perpetuar essa característica como um ponto fraco.

A denominação correta para ser usada neste caso, por aqueles que possuem um domínio mínimo da língua portuguesa (o que o caro RH da empresa X não possuía), é ser gentil. Como é engraçado o temor que as pessoas sentem de serem assim consideradas! Ser gentil, atencioso e cuidadoso são todos traços de fraqueza comumente ligados àquele sexo ao qual ninguém que se preze quer ser relacionado: o feminino.

O homem é forte, racional, inteligente e firme em suas ações. A mulher é fraca, emotiva, facilmente abalável e bondosa demais. É o que afirmam todos os livros e estudos responsáveis por construir nossas bases teóricas e nosso comportamento dentre da sociedade. Pelo menos era assim, até que surgissem teorias contrárias à esta normatividade, expondo que tudo isso não passa de uma construção sócio-cultural. O sexo feminino não é isso ou aquilo. É a sociedade que deseja que ele se comporto de determinadas formas.

Há uma pesquisadora norte-americana chamada Judith Butler (clique aqui para entender melhor) que propõem que esses padrões sejam destruídos e que pensemos os gêneros e os sexos como imposições. É em sua teoria que baseio todos os pensamentos aqui expostos, porque sempre tentaram me colocar dentro de uma caixa na qual eu não cabia e nunca senti me pertencer. E olha que eu sou uma mulher branca de classe média, altamente privilegiada nesse país racista e preconceituoso no qual vivemos.

Ser gentil é, afinal, uma característica minha ou veio junto com o “sexo feminino” gravado na minha certidão de nascimento? Sinceramente, não consigo imaginar como a segunda opção seria possível. E não o é.

A gentileza e o cuidado com o próximo podem ser ensinados na baixa infância, tanto quanto andar de bicicleta, mas ninguém o faz, porque acham que é mais importante criar adultos que serão competitivos e que sabem dizer não. Isso tudo faz parte de uma pesquisa do jornal The Atlantic que você pode acessar nesse link aqui.

A questão é que, como somos ensinados a comemorar nossas vitórias e chorar pelos erros, todos aqueles que se comportam de forma diferente são considerados “bonzinhos demais para o mercado de trabalho”.

E o que padrões de gênero, mercado de trabalho e gentileza têm a ver com o que eu estou tentando dizer aqui? Cara, está tudo interligado.

Ser gentil foi classificada como uma característica exclusivamente feminina e, consequentemente, uma fraqueza. E se o mercado do trabalho foi criado e ocupado, majoritariamente, por homens ela não é bem vista. Só que nós cansamos de viver assim. Não quero ficar presa dentro de casa. O mundo lá fora pertence à mim também. O que eu quero dizer é: nunca permita que ninguém rebaixe aquilo que é parte da sua essência.

Contrário a todo o achismo que nos cerca, um estudo provou que crianças que ajudam as outras tornam-se adultos bem sucedidos financeiramente e estudantes com melhores notas. Sem contar que crescem indivíduos muito menos deprimidos, porque sabem que o mundo é feito de milhares de outros indivíduos, que como ele, precisam de suporte emocional e assistência técnica em algum momento da vida, e que está tudo bem pedir ajuda.

Eu sei que tudo agora gira em torno da economia então lá vai: crianças gentis, e que se preocupam com o próximo, têm uma tendência em ver sua carreira educacional como uma preparação para, mais tarde, trabalharem em algo que contribua para o bem estar da sociedade. Imagina se todas as crianças a partir de agora fossem criadas para pensar assim ao invés de esconderem informações valiosas do amiguinho ao lado só para poder ganhar dele como melhor da sala?

Ser “boazinha demais” é o cerne de todas as partículas de experiências que formaram o ser humano Amanda. E se para me inserir nesse mercado eu preciso abandonar essa essência, e tudo o que ela implica na maneira como eu vejo o mundo, então, com licença empresa X, mas vou procurar um lugar onde eu me encaixe.

E eu acho que você deveria fazer o mesmo!

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Amanda
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Redatora, tradutora e professora de inglês. Aqui: @fale-com-elas-e-sobre-elas e @revistahelenas , IG @clubedochorolivre -rtorres.amanda@gmail.com para serviços