Oito Anos de Terapia
Resumidos mais ou menos
tw.: suicídio, depressão.
Aos dezoito anos sentei pela primeira na frente de uma psicóloga, lembro claramente o sentimento até hoje. Era uma salinha pequena, verde, sem muita decoração. Janaína era o nome dela, lembro de olhar muito para minhas mãos, mas nunca vou esquecer seus cabelos loiros e os olhos gentis.
“Então, Júlia, me fala um pouco sobre você? O que te fez procurar terapia?” — Ela perguntou animadamente.
“Meu irmão que me pediu pra vir fazer. Ele disse que se eu não começasse a fazer terapia iria parar de ir para a terapia dele.” — Respondi, tímida.
“Entendi. Me fala, então, com quem você mora? Me fala sobre sua família.” — Ela insistiu.
“Tenho 18 anos, moro com meu irmão, minha mãe e meu pai.” — E comecei a chorar.
O resto da sessão foi uma névoa que não me lembro nem quero lembrar. Só sei que ao final ela se levantou, me deu um abraço, me pediu para voltar e dizer na recepção que eu precisaria de uma consulta de uma hora e não de trinta minutos. Honestamente não entendi o motivo de tamanha emoção que senti ao falar sobre minha família. Que bela inocência eu tinha, ingenuidade. Não ideia da longa jornada que estaria prestes a enfrentar. Foi Janaína que me falou a primeira vez para procurar um psiquiatra, pois estava com claros sintomas de depressão, foi ela que me falou a primeira vez sobre impor meus limites e sobre olhar as pessoas nos olhos. Foi ela que falou sobre o prazer que eu sentiria ao ter minha própria casa. Muito do que Jana me falou nos primeiros meses de terapia eu carreguei comigo e continuo a carregar. Após seis meses de acompanhamento ela teve de ser afastada da clínica e fui encaminhada a outra profissional que iria me atender em seu lugar.
Bom, foi nesse momento que descobri que o impacto de um profissional de saúde mental tem na nossa vida pode ser positivo, mas também pode ser muito negativo. Essa outra pessoa a qual iniciei novamente o tratamento, bom, dela não lembro o nome, meu cérebro simplesmente deletou algumas informações. Lembro que ela tinha os cabelos ruivos, era uma mulher perto dos 50 anos. Ficava o tempo todo olhando para o relógio, me falando sobre como eu tinha depressão. Tudo que eu falava se resumia à minha doença e não a mim como pessoa. Três sessões com essa pessoa me levaram a uma piora considerável. A última foi numa terça-feira, onde a minha ideação suicida se tornou tão profunda que saí do consultório realmente muito perto de fazer qualquer coisa para pôr um fim àquele sofrimento. Saí chorando desolada, querendo morrer, achando que eu não merecia respirar e que minha mãe seria muito mais feliz comigo morta do que ter uma filha como eu. Mandei mensagem pra Janaína no mesmo dia.
“Jana, boa tarde. Eu estou me sentindo muito mal e estou pensando em morrer. Você continua atendendo?” — Escrevi com as mãos trêmulas.
“Posso te ver na quinta-feira às 15h. Você consegue me ver nesse dia?” — Foi a resposta.
Não sei se Janaína sabe, mas me deu motivo para continuar a viver por mais três dias. Foi nessa sessão que ela me mostrou que eu podia, sim, trocar de profissional e que se não estava me sentindo bem poderia simplesmente tentar novamente com outra pessoa. Ela me disse que um terapeuta ficar olhando para o relógio é um péssimo sinal, que eu não devia nada a ela e que podia sempre começar de novo. Por mais doloroso que fosse. Me passou o contato de uma colega na qual confiava e que o plano de saúde iria cobrir a consulta. Ela salvou a minha vida naquela tarde. Saí do consultório mais tranquila com um novo abraço de Jana e esperança de talvez um dia melhor na próxima terça-feira. Nem precisei pagar a consulta.
Foi assim que conheci Tatiana Mesquita.
Basta escrever o nome dessa mulher e meus olhos enchem de lágrimas. Lembrar de toda minha jornada junto a ela me emociona. Ela tinha um jeito diferente da Jana, nada de abraços no final da sessão, tinha um semblante mais sério, menos amigável, fazia perguntas curtas, não tinha pena de mim. E eu não queria pena, já tinha muita pena de mim mesma e o que menos precisava naquele momento era de outra pessoa com pena de mim. Tatiana sempre me tratou como a pessoa capaz, independente e inteligente que eu sou. Os encontros com ela significavam que eu tinha um momento de paz na minha vida, mesmo que minha semana tivesse sido um inferno. Foi com ela que realmente entendi o que significava impor limites. Na sala dela, chorei quando ao impor limites, perdi coisas que achava que precisava. Onde aprendi que ter meu limite respeitado era o mínimo e não devia jamais ser usado como moeda de troca. Chorei e ri, às vezes ao mesmo tempo, feito o Coringa faz.
Tatiana nunca me diagnosticou, ela nunca colocou nome de transtorno, de doença, de ansiedades, gatilhos, bateria social. Tudo era eu e o eu às vezes estava acompanhado de algo, mas esse algo também falava sobre mim. Nosso foco era sempre em mim e em como ouvir o que meu corpo estava me dizendo e como sentir, como ouvir. Muitas vezes eu não sabia como viver simplesmente as emoções que me tomavam o corpo. Perdi a conta de quantas vezes ela me perguntou:
“E como isso te fez sentir?”
E não sabia a resposta pra essa pergunta porque eu nem sabia identificar meus sentimentos. Porque o que sentia era sempre inválido, inútil, exagerado ou fora da realidade. Eu era uma pessoa muito triste. Um oco do que realmente existia, e foi através da psicoterapia que pude trazer minha verdadeira pessoa à tona. Hoje, já começo as sessões sabendo o que senti, porque senti, quando senti e o que fiz pra mudar, aumentar, curtir ou até mesmo sofrer o que precisa ser sofrido.
Assistir Marley e Eu depois que meu cachorro morreu. Ouvir a música mais triste e lembrar todas as coisas tristes que vivi quando preciso chorar. Ouvir uma música animada pra dançar quando eufórica. Ligar para uma amiga quando preciso contar uma fofoca ou uma notícia boa. Ligar para essa mesma amiga quando estou tendo uma crise de ansiedade daquelas cabeludas. Tomar um banho quando não quero nem me mexer. Comer um doce para me alegrar. Manter distâncias que vão me proteger. Encerrar relacionamentos mesmo que queira continuar.
Não foi fácil, definitivamente não usaria esse adjetivo para classificar meu processo terapêutico. Muito do que citei aqui poderia ser a coisa mais óbvia e fácil para qualquer um de vocês lendo esse texto, mas para mim a palavra “Não” era um desafio. Parar de aceitar migalhas de afeto, aceitar a solidão que vem quando você decide que não quer mais ser tratada como um bicho, até mesmo pelas pessoas que deveriam te amar e respeitar mais que tudo. Realmente não foi fácil, foi doloroso demais aceitar que eu me permiti ser tratada assim, que comprei aquele papo de que não conseguiria fazer uma faculdade, de que não era bonita, de que era esquisita e que o que eu achava que merecia, na verdade, não merecia e não daria nem ao meu cachorro. Não culpo à outrem, nem culpo a mim mesma. A vida é o que ela é, eu era uma criança e não soube viver a vida do que jeito que ela era e ela me engoliu toda e cuspiu de volta, adulta e sozinha pra lidar com o mundo. Cartola tinha me dito desde sempre que a vida é um moinho e eu sei que continuo sendo moída. Dia após dia, lutando contra um diagnóstico de depressão novamente, meus sonhos mesquinhos quase todos triturados e nem estou na metade do caminho. Mas encontro em minha terapia e em mim a força para continuar e para desbravar o futuro com curiosidade apesar de tudo.
Hoje, aos 26 anos, tenho muito que aprendi e não citei aqui e muito provavelmente nunca citarei porque não acredito que seja necessário para me fazer entendida. Quem sabe quando completar uma década de terapia faça outro texto falando mais um pouco de minha experiência. Eu só sinto que sou eternamente grata à Tatiana e à Janaína por terem me ajudado a resgatar meu âmago e mostrar que, apesar das cicatrizes, ele continua forte. Mesmo mastigado, pisado e cuspido de volta ele se reconstruiu e continua seguindo em frente. Agradeço por ela ter sempre mantido a postura profissional, impor limites, ter ética, ser uma pessoa incrível, honrar o CRP dela e por não desistir de mim.
“Eu te amo” — Eu disse um dia desses.
“Obrigada.” — Tatiana respondeu.
Rimos.
Se você chegou até aqui, obrigada!