Preconceituosa

Camille Perissé
Fale com Elas
Published in
4 min readAug 3, 2018
Ilustração: Catarina Sobral

Ponho qualquer música na rádio pra acobertar a voz que vem do banco de trás. Na verdade, não dá pra ser qualquer música, tem de ser alguma guitarra intensa, um som que não deixe nenhuma brecha pro silêncio se preencher dos ruídos externos ao fone — e aquela voz, como um fio, ir penetrando novamente meus ouvidos. Nada de samba, chorinho, erudição, Chico Buarque, como um intelectual de esquerda teria obrigação de apreciar. Pode ser um rock americano, ou brasileiro, vai, que eu já ouvi mil vezes, não importa. Isso é pra morrer. 6 minutos.

Essa voz me irrita. Tantas histórias e conversas interessantes pra se ouvir num ônibus… de uma senhora religiosa que esteja levando sua neta em algum lugar; de um casal de meia idade do qual só se escutam as risadas altas da moça; ou mesmo de crianças da escola municipal que explodem em tanta energia que não cabem em apenas pares de bancos dispostos de forma tão simétricas, e precisam sentar e levantar-se, ir para os fundos ou para a frente, conforme for o balanço das freadas. Mas quem estava atrás de mim hoje era essa voz, tão familiar, tão desafiante a minha paciência, que na primeira frase já me dou conta de que vai saltar no mesmo ponto que eu. E até pra morrer, você tem que existir.

É uma voz meio fina, porém, meio áspera, timbre típico de moleque branco e estudado, de seus vinte e poucos anos, talvez um pouco mais novo que eu. A voz é salgada, me lembra bem o sabor artificial daquela espécie de ração que comemos fazendo bastante barulho e farelos, ao abrir um dos saquinhos produzidos em série. Às vezes comemos seus componentes químicos no ponto ou no próprio ônibus mesmo, pra acidificar o estômago e abrir um buraco além da fome, o que dá vontade de beber cerveja e num jogo despreocupar-se, ainda mais se for horário de rush — o salgadinho no fim de tarde faz pensar em por que, em vez de se sujeitar a um engarrafamento não era melhor se estender num bar, por que não desapegar de vez da saúde. Instantes acabam a eternidade.

Pois ali, apesar de não ser ônibus cheio, nem engarrafamento, em todo o conforto de estar sentada à janela, eu estava sendo obrigada a engolir a voz do Fofura que entrava pela minha garganta. Que se vangloriava pro amigo de suas histórias mesquinhas. De como estava na “fase de estruturação” de uma espécie de startup na Escola de Química, cheia de projetinhos. De como tinha ido até a última fase de um Trainee e deram a ele um feedback que ele gostou, de ser chamado de proativo, mas que por não ter escrito o relatório direito, foi eliminado — erro deles, já que podia aprender a escrever relatório lá dentro. Totalmente capturado pelo sistema: quem nunca se tocou que sempre antes da rejeição ou da crítica do chefe, vem a “estratégia de gestão” de se iniciar com falsos elogios? Até em lugares onde se finge que não há chefes, já vi essefeedback, ou o fora, pra ser menos estiloso.

Essas histórias e esse sotaque de carioca específico de certas partes da cidade, mais abastadas; um sotaque mais arrastado, mais cheio de si, que acredita ser o padrão, o correto, que nem percebe a si mesmo como sotaque, que quer provar ao mundo seu mérito e sucesso, isso tudo já me encheu. É intragável essa voz, que entra pelos ouvidos e deixa a barriga em cólicas, nauseada, tira a paz e o sossego de qualquer paisagem da janela, tira a curiosidade de se ouvir anedotas desconhecidas e apenas me preenche com a sutileza de seu tom, arrogante e competitivo.

Depois da surdez das músicas intensas que não me fazem sentir nada, me encaminho para a porta e olho o perfil de onde vinha a voz: por um lado acertei, é mesmo um moleque branco. Mas não exatamente como eu imaginaria: na verdade, minha imaginação e sentimentos sofreram um bloqueio e não puderam ser atiçados naquele trajeto, mas de qualquer modo não é um perfil tão fidedigno do machinho playboy zona sul roupa de praia. Já estou no Fundão, ele salta comigo. Nerd, óculos Rayban, luzes no cabelo e roupas ajeitadinhas.

Será que essa voz pode se tornar menos irritante ao longo do tempo, no moleque amadurecido? Será que ele é apenas um rapaz, latinoamericano e talvez homoafetivo, talvez inseguro, que finge dinheiro no bolso, que ambiciona uma melhor qualidade de vida trabalhando com tecnologia? Acho que não, mas quem sabe. O fiapo de esperança espremido pelo esforço de empatia condena o preconceito, me leva a expor o caso em praça pública para um possível linchamento, mas no fundo de mim o incômodo da voz sempre vai coçar e inflamar meus órgãos até que eu não consiga mais conviver e vomite nestes pares universitários.

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Camille Perissé
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Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros