Sobre o Pai

Camille Perissé
Fale com Elas
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3 min readAug 30, 2019

Pai, olha. Pai, vê. Pai, abre o olho. Acorda. A vida vem, anda, bebê. Pai, desiste. Pode dormir. Fica aí. Não enche. Quietinho. O choro não intumesce ninguém. Chora alto, berra, berra-boi: Pai! Pai, tudo vai bem. A vida vem, você, nada. Nada está bem. Só vai, vai e vem. Não há parada. Só há trajeto… pai perde o trem. Apavora, tudo perdido, cadê meu filho, cadê neném. Cadê a mais velha, desaparece, nunca vem. Cuidar dos filhos não custa. Custa nada, quanto será. A pensão, quando será que eles vão vir, vão me abandonar. Pai é pânico. Pã.

É o Deus, é o inferno. Pai, já era. Já foi, já entrou, já saiu. Instaurou-se o pai. Todos em pai. Ein, pai.

O pai marca uma entrevista prévia à consulta, sem comunicar a ninguém. Nunca teria posto os pés naquele prédio comercial. Típico do Centro: velho sem ser histórico, cheiro de ferrugem nas grades e de mofo nas paredes. Os tapetes encardidos. Uma fila para o elevador, que ainda conta com aquela antiga profissão: a ascensorista. Seriam todos os andares somente consultórios?

Ele cogita ir de escada, lembrando da vez em que ficou preso em uma dessas máquinas antigas. Mas descarta a ideia, não seria sensato ficar suado por baixo de sua blusa social branca, coberta pelo paletó. Juntando-se àquelas pessoas doentes ou anormais, com distanciamento desconfiado, treina sua respiração para que se faça sutil ao ponto de o ar quase não se mover ao seu redor. Seu parâmetro para isso é um pelo rebelde de seu bigode, cortado simetricamente. Concentra-se nele enquanto vozes ao seu lado propagam números ímpares e salivas. Cinco. Sete. Nove, por favor. Treze, obrigada. Não precisa abrir a boca, quando a porta se abre no sétimo, salta junto a outra senhora, acenando com a cabeça um breve cumprimento à trabalhadora.

Quando o pai lê o letreiro na porta, percebe que sua tensão está em vias de transparecer. Enxuga as mãos na calça e empurra a porta destrancada. A sala de espera está vazia e a atendente ao telefone. Ufa! Ela faz sinal para que se sente. Ele escolhe a cadeira ao lado de um vaso de flores de plástico, longe da TV silenciosa em close caption. Repousa a mala no colo e retira a carteira e os óculos de leitura.

Os ouvidos, atentos a qualquer ruído: espera que entre um louco aos berros a todo instante. A aparência de tranquilidade daquele ambiente cinza sem janelas ainda não o deixa seguro. Enfim se levanta com a identidade em mãos e diz à secretária: “Bom dia, é com o doutor Salomão.” “Ok… responsável do paciente Filipe, marcado às dez?” “Correto.” A moça risca a agenda e diz para o pai aguardar.

Não entra nenhum maluco berrando. Apenas o Dr. Salomão vai até a porta entreaberta no corredor e chama “Alcir”.

Sobre o pai

Esse fragmento pode ser que faça parte de uma história ainda mal-contada, digamos.

O pai do menino mudo segue regras à moda antiga. A princípio, pode parecer aqueles vilões clássicos que personificam o lado sombra que existe dentro de toda criança. Isso, observando apenas o resumo da história. O Pai, porém, nos faz refletir. Como a composição de Gil, onde “o ar vazio, de um rosto sombrio, está cheio de dor”.

O Pai já foi um menino, e, de certa forma, mudo. O pai do pai, o avô, era um paulista descendente de italianos, e teve dez filhos. A família não era bem abastada, pois todas as economias só serviam para satisfazer seus fortes vícios. Quando o Avô bebia e seu estômago contorcia de fome, a sensação de ardor se movia em raiva e o Pai, ainda pequeno, junto com os seis irmãos homens, tomava o front para proteger as meninas da ira do Pai do Pai, o Avô.

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Camille Perissé
Fale com Elas

Aqui guardo escrevivências* e memórias inventadas*. *Livre inspiração em Conceição Evaristo e Manoel de Barros