A utopia do eterno amor possível

Notas de uma crítica-conversa sobre Looping

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
4 min readJan 30, 2020

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“Looping” (Brasil, 2019), de Maick Hannder

Maick é um cineasta metódico. A característica se confirma não só pelos diversos comentários de seus amigos de equipe, que reforçam o preciosismo do jovem diretor ao lidar com as imagens que produz, mas também pelos olhos deste que escreve, ao perceber que, numa conversa despretensiosa, Maick escolhe palavras e argumentos com cuidado para evitar se sobrepor ao filme que compôs. Esse suposto perfeccionismo consegue, contudo, se materializar numa humildade fantástica: para com o curta que roteirizou, fotografou e dirigiu; e para com as outras pessoas que estão ao seu redor.

Refiro-me a Looping, primeiro filme oficialmente assinado pela produtora Ponta de Anzol (MG). O curta representa uma melosa história de amor que, justamente pelo excesso de açúcar, comporta os anseios utópicos de certa minoria cujos sonhos não eram nem mesmo permitidos. O curta, que estreou na mais recente edição do FestCurtasBH (o Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte) e foi exibido neste domingo (26) na 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, conta os desdobramentos de um acontecimento: um jovem que vê outro “atravessando a rua hoje”.

Reunimo-nos — eu, Maick Hannder, Jacson Dias e Higor Gomes — há um tempo atrás no Centro de Referência da Juventude de Belo Horizonte, ocupando uma mesa redonda num auditório até então vazio. Havíamos preparado uma entrevista. Daquelas que você senta, liga o gravador, estuda a pauta e prepara previamente as perguntas. Reduzir aquela experiência no jornalismo, eu sabia, seria um desrespeito àqueles quatro homens pretos que tiraram uma noite para, constituídos pelo seu próprio modo de pensar o mundo, refletir, elaborar, conversar sobre o cinema e sobre o lugar que ocupam na arte e na profissão.

Por isso, para hoje, não proponho nada mais que uma crítica-conversa: ampliar a interpretação para, junto com os autores, reunir alguns dos lapsos de fabulação criados por Looping quando o filme reúne uma imagem, sua matéria-prima, a um vasto e narrativo campo sonoro.

As aspas são do Maick, o diretor do filme.

“É uma imagem, um retrato. Ela não tem significado em si. Quem coloca significado nela é você. É você que vai fazer uma viagem nas suas referências e nas coisas que você já viu pra tentar entender aquilo”.

Mesmo que a vontade de Maick seja a de pressupor menos, a força de Looping reside justamente na proposição de mundo que o curta apresenta. Nessa utopia, por exemplo, um jovem negro pode ser bonito. João Victor Ferreira — que dá materialidade a um dos sorrisos mais lindos que já vi — já relatou diversas vezes o quanto o filme o ajudou a desenvolver a própria autoestima. Não é para menos. A câmera que o enquadra não só o ama, como faz-nos apaixonar por aquele corpo. Tal como uma pintura, onde diversos elementos encontram-se dispostos a exaltar certa musa inspiradora, os planos de Looping centralizam toda a atenção e todo o desejo ao corpo desse homem que, sem amarras, redireciona e retribui essa paixão para o interlocutor do extracampo — seja o narrador, sejamos nós mesmos, espectadores.

“Tudo foi pensado pra exaltar esse corpo, pra colocar esse corpo nesse lugar de encantamento […] A construção narrativa do filme é um fiapo, uma desculpa pra colocar ele [o protagonista] ocupando um espaço e ocupando, ao mesmo tempo, a tela de cinema”.

Dessa forma, o curta desenha uma utopia possível não só para a paixão gay, mas para a paixão negra e gay. Paradoxalmente, sai das convenções do clássico cinema narrativo para, a partir da experimentação, criar a narrativa mais clássica possível. Essa é sua revolução. Ao representar a história de um amor que se constrói em parques de diversões, passeios de bicicleta e motéis a beira-estrada, o curta fortalece novas referências visuais a todos aqueles cuja educação afetiva foi formulada por meio de brancos romances adolescentes norte-americanos.

“Se você não levar esse relacionamento a sério na segunda cena, o filme não funciona. Eu precisava de um engajamento maior de quem assistisse. Achava que isso era também uma forma de aproximação, porque é mais instigante quando você traz coisas suas [para a narrativa]”.

É o que sempre me questiono: aquilo realmente aconteceu? Há um quê de artificialidade nesse modo de narração, nessa narrativa fragmentada, nessa superexposição de luz na imagem, nesse álbum contemporâneo de stories formados por gifs em boomerang. Além do que, o diálogo estético com as redes sociais faz com que a imagem digital, que nasceu para a eterna apropriação e reprodução, adquira certos contornos de fugacidade, transformando o acontecimento — real ou fictício — em breve memória. Desloca, assim, o presente para o passado.

“A câmera era muito escura. Chama Nichika N9000. Uma câmera analógica, então você não vê o resultado na hora. Uma câmera extremamente escura. […]

Eu acho que ela traz uma coisa cintilante. Tem umas cenas em que o João simplesmente emana uma luz, e tudo fica meio parado, e a água vira gelatina. Existia uma aura diferente e dava pra conseguir o encantamento com ela.

Mas ela é muito escura”.

Porém, mesmo na escuridão, existe uma luz, ainda que artificial. E, nessa artificialidade já mencionada, encontramos a fragilidade. Um medo pelo fim — do filme, em si, e das nossas próprias paixões. Nosso desejo é o de, em conjunto com esses personagens, congelar o momento para fazer dessa utopia, eternidade.

Eis que Looping atende aos nossos pedidos. Afinal, a partir do movimento do corte que, na cena, se assemelha a um batimento cardíaco, o filme termina no gozo. Naquele íntimo momento em que, entre um suspiro e outro, nos entregamos ao que nos é mais carnal para que a mente possa enfim flutuar desimpedida. Com essa proposta, faz-se um instante, funda-se uma recolocação. Não é mais passado, e sim, presente. A memória supostamente digital reconfigura-se para localizar-se no acontecer agora. E o filme que olha com uma câmera do passado assim propõe uma narrativa ao próprio futuro.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.