Arábia: uma ode ao trabalhador brasileiro

O capitalismo a partir da ótica de um de seus escravos

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
4 min readNov 29, 2017

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Forte narração em primeira pessoa a partir da vida de Cristiano, interpretado pro Aristides de Souza.

A mãe de Aristides de Souza estava sentada numa das primeiras fileiras do Cine Humberto Mauro quando “Arábia” (2017) estreou em Belo Horizonte. Foi ela quem recebeu um dos primeiros agradecimentos de Juninho, como Aristides é conhecido, após os efusivos aplausos que demarcaram o fim da exibição. Logo após, Affonso Uchoa também ressaltou a importância da presença de seus pais na plateia. Eles assistiam ao filme pela primeira vez.

Essa breve cena diz muito sobre a atual geração de cineastas brasileiros. Não pelo protagonista do longa e um dos diretores de “Arábia” agradecerem à presença de seus pais na sessão. Mas por transmitir, desde os tempos daquela “Vizinhança do Tigre” (2014) que Uchoa também dirigiu, o sentimento de origem, gratidão e pertença que guia a produção emergente brasileira, no geral, e os cinemas produzidos em Contagem, especificamente. Sentimentos cuja essência também reverbera na nova cria contagense.

Pois “Arábia” é o bom filho que à casa torna. Dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans, o filme conquistou o Brasil e o mundo antes de aterrissar em solo belo-horizontino durante a programação do 21º Forumdoc.bh, o Festival do Filme Documentário e Etnográfico Fórum de Antropologia e Cinema. Ganhou o Melhor Filme, Ator, Montagem e Trilha Sonora no 50º Festival de Brasília, além do prêmio do júri da crítica, e foi aclamado em Roterdã, na Holanda, Cartagena, festival colombiano, e Karlovy Vary, República Tcheca, entre muitas outras cidades globais.

Por qual motivo? Por retratar a bela e ordinária vida do trabalhador brasileiro. E por não deixar com que essa narrativa poética que valoriza e engrandece esse mesmo trabalhador se transforme num drama estético cuja existência se resume a ser apreciado. Por sua vez, em seu mérito, “Arábia” nos conclama a refletir sobre o capitalismo a partir da ótica de um de seus escravos.

O faz de modo extremamente irônico, há de se admitir. A partir do quase encontro entre classes que os diretores ressaltaram nos comentários após a exibição. Quem assiste ao filme sem a estraga prazeres de uma sinopse facilmente engana-se pelo seu início. Pois novamente — uso o advérbio para reiterar a frequência com que a classe média brasileira é retratada nas telonas — somos apresentados a um garoto branco de cabelos cacheados que pedala nas ruas de Ouro Preto e mora próximo a uma metalúrgica. Mas longe dos problemas que o preocupam e que transformariam o longa numa experiência completamente diferente, é um caderno acidentalmente encontrado na casa de um operário dessa metalúrgica que dita o verdadeiro rumo do filme. Bem vindo à Morte e Vida Severina de Cristiano: homem negro e favelado, contagense, que após rodar e ser preso, decide ganhar a vida trabalhando pelo Brasil.

E trabalha. Em plantações de mexerica e construções civis. Em empresas de tecelagem e casas de prostituição. Pedreiro, operário, braçal, pau pra toda obra. Tal como um nômade a quem a vida leva para lá e para cá, sob a voz de um narrador-personagem-protagonista que conta e reflete, em off, sobre as histórias que vivencia.

“Arábia” é um filme de planos fixos e rígidos que muitas vezes enclausuram seus personagens pela linguagem cinematográfica. Faz disso uma metáfora para o destino inexorável a que eles estão submetidos. É composto por diálogos ricos, responsáveis por criar manifestos revolucionários a partir de situações completamente corriqueiras, e momentos de contemplação, que fortalecem a narrativa com o auxílio de uma primorosa direção de fotografia. Mas também apresenta singelas passagens de comicidade e afetos. Principalmente pela presença de Ana, a mulher que Cristiano amou, e Neguinho, o senhor cara de pau que detesta rúcula, ex-Vizinhança do Tigre.

É notável que os afetos expostos em todo o longa atravessaram a produção e a trajetória desses dois autores. “Arábia” não é poético apenas por sua narrativa calma e reflexiva, que convida o espectador a adentrar sua história. Seu lirismo reside justamente na aparente paixão com que o filme foi concebido. Já comentei isso antes ao escrever sobre a Filmes de Plástico, e hoje reitero com certeza e convicção: o cinema produzido em Contagem representa um respiro e uma nova força para a contemporânea geração de cineastas brasileiros. Vida longa.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.