Atravessar o esquecimento

breve ensaio sobre os curtas “Vó Maria” e “Travessia”

Marco Melo
Fale de Cinema
3 min readMay 16, 2018

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Travessia

Vó Maria (2011), de Tomás von der Osten, e Travessia (2017), de Safira Moreira, assemelham-se a um trajeto onde só restaram os rastros. A fotografia, a imagem, aliada a vozes, são a caneta com a qual ambos se escrevem. No entanto, enquanto Vó Maria se escreve de trás pra frente, apagando aquilo que um dia foi, Travessia escreve pela primeira vez algo que nunca pôde ser.

Vó Maria

Nesse primeiro, através das vozes da neta, da bisneta e da trineta, acompanhamos gradualmente a dissolução da pessoa de Maria. Ao ouvirmos os causos da neta em relação à avó, com a qual conviveu, percorremos a pele desta. Essas imagens nos levam ao limiar da proximidade em relação ao outro, revelando seus sulcos, suas manchas e seu sangue. Trata-se de uma foto que nos permite o toque, o contato. Por outro lado, já em Travessia, a primeira fotografia revela, em fragmentos, uma mulher negra segurando uma criança branca. No verso, em sua descrição, é mostrado o nome da criança seguido por “e sua babá”. Essa inscrição nos apresenta uma fotografia impessoal, pertencente ao branco, alheia à imagem dessa mulher negra, registrada sem nome. Essa fotografia, mais do que um objeto, seria a própria memória apagada, ou melhor, não elaborada. Ao mesmo tempo, a montagem retalha essa fotografia para conceber um outro olhar ainda possível sobre ela. Se, num primeiro momento, os fragmentos evidenciam um corpo cindido, em pedaços, e uma criança branca sobre mãos negras, no próximo, a montagem provoca sobre essa fotografia uma busca pelo reenquadramento do negro, sua reinserção mesmo que tardia. O último plano (ou pedaço da foto) desta primeira parte é precisamente o rosto desta mulher.

A partir desses dois pontos, a escrita de Vó Maria passa a se desmanchar, enquanto a de Travessia se faz para frente, multiplicando-se. Os movimentos são distintos, contrários, pois assim são seus sujeitos. No primeiro, na medida em que as falas sobre a Maria se tornam cada vez mais escassas e menos subjetivas, passadas as gerações, torna-se mais distante a imagem desta mulher, rumo ao esquecimento, como podemos sentir quando sua imagem se afunda na escuridão do quadro final. O que dói no processo deste filme é a percepção de que para poder existir se depende da memória do outro, que inevitavelmente o tempo dispersa. No entanto, se por um lado a imagem e as falas se distanciam, por outro, a pessoa retratada, Maria, se torna mais visível na tela. Ao vê-la de frente, como um rosto que nos foi apresentado antes como pele, resta-nos lidar com a interpelação de seus olhos e a terrível constatação de um rosto perdido.

Já em Travessia, a mulher negra, no último enquadramento que citamos, necessita de uma sobrevida, uma vez que teve extorquida sua memória e, portanto, sua existência. Nesse caso, a memória foi apagada antes mesmo de ter sido traçada. Por isso, o gesto seguinte possível, feito por essa escrita, é contrário ao apagamento, direcionando-se à memória de um futuro, à possibilidade da existência, ao gesto da filha que, como a escritora Conceição Evaristo escreve no poema lido sobre a fotografia, carrega em sua voz todas as outras que a antecederam. Safira Moreira, como essa filha de todas mães, escreve esse gesto ao colocar diante da câmera, antes do fim, famílias negras. Essas, ao contrário da fotografia de aspecto fúnebre e antigo no final do Vó Maria, aguardam em pose e direcionam o olhar para a fotografia vindoura e, gozando da liberdade não estanque das quase fotos, movem-se, como figuras vivas que são, diante da câmera que agora as registra.

*Este texto foi produzido na oficina “zona autônoma de crítica”, ministrada pelo crítico Victor Guimarães.

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