Chacoalhando uma imagem congelada

Uma possível análise de “No Intenso Agora” a partir de seus cartazes promocionais

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
4 min readApr 10, 2019

--

O passado clama por reinterpretações constantes. Dada a sua inerente imprecisão, é enquadrado nas mais diversas disputas narrativas sem um pedido de licença ou desculpas, tomado pelas intrigas do poder vigente às épocas dessas interpretações. É isso que João Moreira Salles realiza: interpreta e reinterpreta imagens do passado, conduzindo-nos, com sua voz, pelos diferentes arquivos produzidos sob as efervescentes condições de 1968.

Há diversas maneiras de se olhar e interpretar esse ano de utopias — tanto as que pareciam possíveis, quanto as que foram derrotadas. O trunfo do documentário está em evidenciar a possibilidade de encará-las de frente, não de costas, e estabelecer um pacto com seu espectador para realizar uma interpretação que ocorre no presente, na marra, no intenso agora da feitura dos arquivos exibidos.

No Intenso Agora. Título que faz jus à obra. Sendo cada palavra distribuída nos três frames que compõem o cartaz de divulgação do documentário. Como se dissesse: nesse intenso agora, um jovem arremessa um objeto ao extracampo. Nesse intenso agora, seu rosto se contrai com o esforço — físico e psíquico — do movimento. Nesse intenso agora, os vultos do segundo plano se aglomeram para mais uma investida — ou recuada.

Ao reciclar uma das imagens mais emblemáticas dos movimentos de maio de 1968, quando estudantes parisienses e operários franceses ocuparam as universidades, fábricas e ruas do país numa efervescência subversiva e utópica, João Moreira Salles parece firmar um compromisso com a história, demarcando naquele movimento a temática de seu documentário.

Na fotografia em questão, um estudante arremessa uma pedra do calçamento em direção à polícia francesa, em meio aos violentos embates do período. Mas é a divisão dela em três frames que indica não uma temática, mas um modus operandi, uma ótica que guiará toda a narrativa do documentário: o movimento, perseguido de perto pela imediaticidade. Dois subjetivos que conferem às imagens de arquivos de 1968 um estatuto de permanência frente aos quase cinquenta anos que separam a sua captação da montagem do documentário. “Em termos de linguagem cinematográfica, fica a impressão de revivermos a intensidade daquele agora de outrora”; é o que escreve Pablo Gonçalo para a Revista Cinética.

Além de fotografia histórica, o momento registrado pelo cartaz é também parte integrante do filme. João Moreira Salles assim o descreve:

Maio em Paris. Do acervo de gestos de 68, esse é o mais marcante. O corpo vergado pra trás, o braço em estilingue, a energia represada a um segundo da descarga, o giro de atleta olímpico. E quase sempre: o recuo.

No filme, o diretor desacelera o arremeso para cravar uma descrição mais precisa. É nessa paralisação do agora, nesse trapaceio apenas possível na montagem, que conseguimos ver um terceiro imperativo que também guia o longa: a dança. Mais precisamente, a poesia que esse corpo exprime ao se movimentar.

Outro cartaz sintetiza essa ideia com mais ênfase.

Nele, vê-se uma mulher encoberta num triângulo formado por duas bandeiras, a que ela segura e a que está em segundo plano, como que abraçada pelo movimento político. Embora negras graças ao P&B das fotografias da época, sabemos que é o vermelho quem abraça esse corpo. Rouge, apenas uma das cores da bandeira tricolor. Hóng, a mesma cor que povoa boa parte das imagens coloridas do documentário, aquelas produzidas pela mãe do diretor em sua viagem patrocinada à China comunista. Naquele mesmo 1968, ano que cabe todas as contradições definidoras.

A mulher é o único ponto em foco no pôster. E seu rosto, diferentemente do homem que arremessa uma pedra, não demonstra raiva. Não demonstra revolta. Ao menos naquele agora, uma estranha paz toma conta de sua expressão, convidando o espectador a decifrar o mistério daquele corpo oculto e a contemplar a serenidade de sua face.

Essa é a surpresa de No Intenso Agora. A intimidade com que o documentário parte do mínimo para atingir ao macro, relacionando, com poesia, as memórias de Elisa Moreira Salles aos grandes acontecimentos do final da década de 60. Nisso, ele parece rejeitar a grandeza, apresentando-se como apenas mais uma reinterpretação possível. Não é à toa que os nomes da equipe do filme e o símbolo dos festivais por onde ele foi exibido não estão em grande destaque, ocupando apenas o espaço que lhes resta da composição do cartaz. O foco não está neles. Mas sim em Elisa, a mãe em férias; em Daniel Cohn-Bendit, o jovem revolucionário; em Edson Luís, o estudante morto pela ditadura brasileira. Em todo os nomes que fazem de 1968 um ano complexo e contraditório.

Texto produzido para a disciplina “Crítica Cinematográfica”, ministrada por Nísio Teixeira no curso de Comunicação Social da UFMG.

--

--

Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.