Das coisas que se pode fotografar
por Waldísio Araújo
Surgimento e consolidação da fotografia
A fotografia envolve, no mínimo, três processos técnicos distintos. Inicialmente, é preciso fazer com que a luz refletida pelos objetos incida sobre uma superfície. Tal processo existe mesmo naturalmente: faz parte do mecanismo do próprio olhar humano (com a formação provisória da imagem na retina) e pode ser vivenciado num quarto escuro separado da luz do sol por uma estreita fresta. Na pré-história da fotografia, é representada pela câmara escura, datada do século XVI, espécie de caixa dotada de um orifício pelo qual passa a luz que será projetada como imagem sobre um fundo plano. Contudo, esta imagem não adere por si mesma à superfície, embora possa servir de base a um esboço de desenhista ou pintor.
Faltava, pois, o desenvolvimento de um segundo processo, o de fixação da luz ao plano de incidência, o que pode ser conseguido por reação química entre os fótons luminosos e a matéria constituinte da superfície, feito atribuído a Niepce (1826), e consolidado por Daguerre (1835), mediante a obtenção de negativos (campos claros em lugar dos escuros, e vice-versa) reveláveis por processos químicos capazes de fazer aparecer a imagem correta, positiva. Originava-se assim a fotografia propriamente dita, e a primeira câmara, o daguerreótipo, seria apresentada, patenteada e divulgada a partir de 1839 e logo popularizada à medida em que se melhorava a qualidade da imagem e era diminuído o tempo de exposição necessário a sua fixação.
Contudo, o daguerreótipo possuía a desvantagem de permitir apenas um exemplar, pela revelação da própria chapa exposta. Coube, então, a Talbot, a partir de 1840, com a invenção do calótipo, o mérito de dotar a fotografia de um terceiro processo, que permitiu a reprodução de um número indeterminado de cópias a partir de um único negativo. Assim se estabeleceu a via que conduziu à fotografia moderna, que consiste, essencialmente, como vimos, na projeção da luz refletida pelo objeto sobre uma película localizada no fundo da câmara, na reação físico-química dos fótons com as substâncias que compõem a película fílmica e destas com outras substâncias, gerando uma imagem em negativo revelável em positivo, e na reprodução dessa imagem revelada na quantidade desejada de cópias, chamadas comumente de fotografias.
Condições de uma nova arte
Embora não essenciais, outros desenvolvimentos técnicos, tais como a película gelatinosa ou a fotografia a cores, tornaram, em relativamente pouco tempo, mais portáteis e baratas as câmaras e mais atraentes e manuseáveis as fotos. De qualquer modo, já tínhamos, pela década de 30 do século XX um instrumento capaz de registrar coisas e eventos. No entanto, o mundo é vasto e diverso, e não é possível fotografá-lo todo, pois não somos deuses e não existem câmeras divinas. Nós, humanos, felizmente, necessitamos escolher, selecionar o que consideraremos digno de valor, e o fazemos de acordo com nossas visões de mundo particulares, nossas paixões, nossos medos, angústias, desejos, crenças, dúvidas, loucuras ou pecados; em suma, de acordo com a maneira que cada um tem de “enquadrar” o mundo em que se insere, de apoderar-se dele, de conquistá-lo, o que quer dizer dotá-lo de valor e reconhecer esse valor para nós; em outras palavras, amá-lo. Uma fotografia se faz, assim, com luz, reações químicas, enquadramento, valoração e amor.
As nossas formas particulares de enquadrar o mundo das coisas não são arbitrárias; caso contrário, a maior parte do que fotografássemos ou falássemos seria incompreensível para os outros. Na verdade, além da valoração a que nos referimos, nós vemos, conhecemos e mostramos as coisas através de linguagens que nos ensinaram desde sempre ou que inventamos, sendo elas as fronteiras do cognoscível. Claro que é maçante ter limites, mas sem eles não seríamos sequer humanos, o que quer dizer que não seríamos sociais, históricos. E tampouco existiriam artes, como a fotografia. Por outro lado, a vida social nos propõe ou impõe discursos já prontos, feitos com aquelas linguagens e que silenciosamente reafirmamos e com eles justificamos a maioria das nossas ações e pensamentos. Esses discursos, que dificilmente criticamos, perfazem visões de mundo artísticas, religiosas, antropológicas, cosmológicas e muitas outras, inclusive as que dizem respeito mais proximamente a nossas relações com os outros, ou seja, as éticas e as políticas.
Fotografia, beleza e poder
Aparentemente, a fotografia é a arte isenta, neutra, apolítica, imparcial, não manipulável, visto que após o clique o fotógrafo nada pode fazer para alterar o caminho da luz que sensibilizará a película e pouco sabe do destino que sua imagem terá nesse mundo. Correto, mas esses são apenas os caminhos mais curtos, sendo muito mais longos e importantes aqueles (inumeráveis) que conduzem o homem que fotografa a escolher seu tema e a enquadrá-lo, havendo ainda inúmeras possibilidades durante e pouco após a revelação. E depois há os infinitos modos pelos quais isso é visto ou compreendido por outras pessoas.
Tomemos como exemplo uma foto macabra que mostra cabeças decapitadas de capangas do cangaceiro Lampião. De que fala ela? Outrora falava do castigo dado à desumanidade do poder do cangaço; hoje fala da desumanidade dos poderes oficiais. De qualquer modo, fala sempre de poderes, pois é impossível não falar deles, tendo em vista que só falamos para exercê-los, e isso é verdade mesmo quando calamos, como ainda falam caladas, pela fotografia, aquelas cabeças destroncadas. E que poderes detém a fotografia? O de mostrar o que consideramos “belo”, o de expressar o que consideramos “verdadeiro”, o de tentar impor o que consideramos “bem”. Logo, como todas as artes, ciências e filosofias, a fotografia fala do belo, do verdadeiro e do bem, e cada fotógrafo tem concepções diferentes acerca do que vêm a ser essas três coisas que, em conjunto, chamamos “visão-de-mundo”.
Assim, a fotografia mais aparentemente neutra não está isenta de pensamento ou beleza, para o bem ou para o mal. Fotografamos porque valorizamos, isto é, submetemos o objeto a nossos juízos de valor. Ocorre, além disso, que certas pessoas dotam seus pensamentos de um alto nível de coerência e usam desta para, harmoniosamente, recriar o mundo, ou melhor, criar mundos novos em que o feio e o injusto são revelados, denunciados ou exorcizados. Pensemos, por exemplo, nas fotos de Sebastião Salgado que mostram enegrecidos trabalhadores de mina de carvão na Índia: para que viajar tanto para fotografar feios e sujos corpos seminus ao invés de fazer fotos de belos e embiquinados corpos femininos numa ensolarada praia de Maceió?
Tudo fica, talvez, mais claro se buscarmos penetrar a consciência de Salgado, da qual suas obras são indícios preciosos. Eis que vivemos, diria talvez ele, num mundo economicamente globalizado em que matéria-prima, energia, tecnologia, capital e trabalho dispersam-se por toda parte. Com efeito, a fabricação de minha câmara, por exemplo, pode envolver trabalhadores de uma mina indiana, trabalhadores de uma usina siderúrgica japonesa, trabalhadores de uma fábrica de produtos plásticos belga e outros, tudo isso dominado por capital britânico e montado em Taiwan. Explora-se a mão-de-obra barata dos indianos e suas jazidas minerais, para que seus trabalhadores chafurdem como minhocas nas entranhas do planeta em troca de um salário miserável, a fim de sustentar a rica indústria do Primeiro-Mundo e possibilitar tanto a fabricação de minha boa câmera Leica quanto minhas viagens pelo mundo em busca do prazer ou obrigação de fotografar. Minha arte consiste, pois, em render homenagem àqueles que a tornam mesmo possível e que a maioria de meus colegas recusa a fotografar e até a ver. Trata-se da apologia do trabalho humano, é verdade, mas mediante a denúncia das péssimas condições às quais ele está submetido e, por essa via, sua onipresença nos próprios atos de fotografar, revelar, imprimir, expor, contemplar ou distribuir imagens.
Negando ou renegando o fascismo
Talvez não seja propriamente essa a visão de mundo de Salgado, aquilo que ele gostaria de dizer, mas expressa uma verdade que não se pode ocultar, a de que é impossível não dizer algo, ainda que se o diga falsamente, e é exatamente por isso que não existem pessoas apolíticas. E a fotografia exerce um poder junto ao imaginário atual somente comparável ao do texto escrito, a tal ponto que a grande mídia costuma aproximar ambos, como se a verdade fosse tão dificilmente reconhecível que necessitasse repetir-se de todas as maneiras possíveis. Como exemplo temos que determinado jornal nos fala, por escrito, da visita de um candidato a deputado a uma comunidade pobre de subúrbio; ao lado do texto, vemos uma foto do candidato sorridente com uma criança feia, suja e magra nos braços, enquanto recebe uma palmadinha no ombro por parte de um popular. Por que não imprimir apenas o texto? Ou por que não substituí-lo por várias fotos relativas à visita? Para que duplicar a incompetência ou fraqueza do político diante dos problemas sociais? Na verdade, o objetivo, consciente ou não, é transformar fraqueza, burrice e estupidez em aparência de fortaleza, inteligência e justiça, a partir da insistente redundância do falso.
Ao lado, porém, dessa retórica de fachada da imprensa, criadora artificial de “verdades” de mão única, devemos considerar o contrário: que texto e imagem não podem e não devem dizer uma só coisa nem a mesma coisa dentre muitas, pois que se submetem a linguagens múltiplas e distintas. O texto também pode fazer ver sem os olhos; a imagem também pode ser lida sem palavras, e a tradução fiel de uma linguagem a outra — a da fotografia para a da literatura, ou vice-versa — é impossível: a imagem não mostrou (o texto, sim) que a esposa do deputado estava, fora da foto, a abraçar outra criança não menos feia, suja, magra e pobre; o texto não mostrou que o sorriso do deputado não era convincente e que havia, afixada num muro em segundo plano a inscrição “Compre os carnês do baú da felicidade”. A fotografia nega por si própria o axioma fundamental do fascismo: o de que haveria por trás de cada acontecimento um problema único para o qual um única resposta seria a verdadeira, condenando-se como falsa ou criminosa a sua negação e a própria recusa a posicionar-se diante do problema.
A fotografia tem uma bela história, e humanos como Niepce, Daguerre ou Talbot merecem seu lugar no panteão da humanidade, pelos avanços técnicos que proporcionaram. Além disso, a fotografia é, em grande parte, a história dos tempos recentes, visto que não gostamos de saber de acontecimentos não documentados fotograficamente, e a maioria dos “leitores” dos jornais e revistas só olham mesmo as imagens. Acima de tudo, a fotografia conquistou seu lugar como arte respeitável e gerou grandes artistas, enriquecedores do patrimônio cultural da humanidade, como Salgado, Robert Capa ou Henri Cartier-Bresson. E são estes, mais que os anteriores, os que sugerem que há muito mais coisas entre o mundo e o cérebro — passando pela câmara — do que nossa pobre retina é capaz de fotografar.
Originally published at www.waldisio.com on July 30, 2015.