Estamos condenados a permanecer fudidos?

“No Coração do Mundo” e o eterno corre por uma vida melhor

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
4 min readAug 7, 2019

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Marcos (Leo Pyrata) e Ana (Kelly Crifer), dois dos protagonistas do longa. Divulgação Embaúba Filmes.

Na divulgação de sua música de maior sucesso, “BH é o Texas”, MC Papo explicita as comparações que deseja fazer com a afirmação principal. Mais do que evidenciar o espírito sertanejo que habita as duas regiões tão distantes, Papo quer apontar que existe algo sendo produzido fora do eixo Rio-São Paulo. Que, assim como o Texas contribui ativamente para a cena do rap norte-americano, muito vem sendo produzido em Minas Gerais. Seja no rap ou no hip hop, próprios da cultura urbana e periférica que vem emergindo com força cada vez maior, seja no cinema, arte de possibilidades infinitas e representações potentes.

Ao assistir No Coração do Mundo, longa de Gabriel Martins e Maurílio Martins que estreou na semana passada, percebo como música e filme parecem ter sido feitos um para o outro:

Válvula de escape, baile funk ou pagode
O povo dança pra esquecer que todo dia se fode
Maconha no ar, ameniza o sofrimento
De quem rala todo dia pelo seu sustento

Na motherfucking Texas, vulgo Contagem, região metropolitana da capital mineira, Gabriel e Maurílio realizam um mergulho profundo em vários personagens para compor um mosaico possível das diversas vidas que se entrecruzam na realidade do bairro Laguna. Lá, um homem tenta sobreviver entre bicos e delitos. Outro assume a malandragem ao tentar mudar de vida. Uma percorre a comunidade todo santo dia, cobradora de um ônibus coletivo. Outra arrisca um plano perfeito para ganhar uma bolada e, finalmente, alcançar seu coração no mundo.

No filme, Dona Sônia reprisa seu papel do curta Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins. Divulgação Embaúba Filmes.

Isso para citar apenas alguns. Muitos outros personagens habitam os planos do filme, cada qual no seu corre, apresentados pelo tempo necessário para que reconheçamos seus medos e desejos, sonhos e aflições. São narrativas pontuadas pelo característico tom de observação da produtora Filmes de Plástico, onde as coisas parecem simplesmente se desenrolar em frente às câmeras com a naturalidade de uma direção fluida e segura do que quer contar.

Terceiro longa da produtora, é interessante perceber como No Coração do Mundo se diferencia dos outros dois, dirigidos por André Novais Oliveira. Embora o nome do diretor esteja listado tanto na produção quanto no elenco desse, e mesmo que várias sacadas de enquadramento e duração de cena realizam um diálogo com os prévios Ela Volta na Quinta (2015) e Temporada (2018), o filme da dupla se particulariza por uma firme noção de autoralidade, já presente em seus curtas prévios: um retrato fiel do cotidiano, próprio de uma vertente do cinema nacional contemporâneo, e que consegue, ainda, flertar com o thriller do cinema de gênero.

Isso sem idealizar, por um lado, ou apelar para um discurso moralista, por outro. Me recordo de uma conversa distante que tive com Affonso Uchoa, diretor dos premiados A Vizinhança do Tigre (2014) e Arábia (2017). Uchoa, que também é de Contagem, resumiu naquela conversa os principais discursos até então em vigor nas representações da periferia brasileira (isso mesmo, no singular): o lugar do crime, da violência e da falta, ou o lugar de humildade, superação e mudança. Ambos os lados extremamente romantizados.

Entretanto, em No Coração do Mundo, a favela é aquilo que ela é. Nela, cabem tanto a violência quanto o afeto. Naquele espaço, convivem tanto trabalhadores legais quanto ilegais. Pois, ali, as definições entre aquilo que é certo e aquilo que é errado nunca geram significações completas e coesas, dificultando qualquer julgamento rápido e objetivo. Gabriel e Maurílio não só sabem disso — por terem vivenciado essa realidade, apresentando o quintal da própria casa — como sugerem novos fatores de interpretação: a inércia e a circularidade. Presos naquele contexto, os personagens do filme parecem orbitar sempre os mesmos problemas e as mesmas situações, condenados pela opressão de um sistema que não deixa pobre vencer na vida. O coração do mundo, o lugar “onde a gente quer pisar” — nas palavras firmes e esperançosas de Selma, personagem interpretada por Grace Passô -, não passa de um horizonte distante, quiçá inalcançável, imobilizado na imagem dos falsos pinheiros que compõem o fundo de uma fotografia escolar. Resta viver um dia após o outro, encontrando forças para seguir.

Selma (Grace Passô) e a busca pelo coração do mundo. Divulgação Embaúba Filmes

No Coração do Mundo é o longa certo para coroar a uma década de existência da Filmes de Plástico, essa produtora de origem contagense que vem dando novo rosto e vigor ao cinema brasileiro contemporâneo. Não só por reunir alguns dos personagens que já deram as caras em outros curtas da produtora; mas, principalmente, por apresentar a diversidade do bairro Laguna e Milanez, o coração do mundo dos diretores.

Assistir à estreia do filme no Shopping Contagem, a 10 minutos de onde ele fora gravado, foi outra experiência à parte. É sensacional ouvir os gritos de reconhecimento da plateia quando o público vê a si mesmo ou a seus amigos na grande tela de cinema. Tive a sorte de assistir à versão com comentários do longa, já que duas jovens atrás de mim, moradoras do bairro, desembolavam os mais diversos assuntos a partir daquilo que estava sendo apresentado.

Meus desejos sinceros para que mais filmes nacionais realizem esse bonito diálogo com o seu público com mais frequência.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.