“Fala sério, Mãe!”: entre uma representação elitizada e a universal afetação

É cruel fazer com que espectadores se identifiquem com uma realidade alheia à sua?

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
6 min readApr 9, 2018

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Ingrid Guimarães e Larissa Manoela entre relações de afeto e descontração

Larissa Manoela fez campanha intensa para divulgar seu mais recente filme, “Fala sério, Mãe!”. Além de comparecer em diversas pré-estreias ao redor do país, sempre acompanhada pela também protagonista e roteirista Ingrid Guimarães, a sensação mirim revelada pelo SBT teve que pedir uma licença ao chefe para visitar a rede de televisão rival, Globo, e comparecer em alguns programas da emissora. Esteve no Encontro com Fátima Bernardes e no Altas Horas e fez questão de falar não só do filme, como de todos os outros produtos de sua breve carreira não mais mirim.

Pode-se falar o mesmo de Ingrid Guimarães. A atriz, considerada por muitos como uma das impulsionadoras do cinema nacional de massa, corresponsável pelos sucessos de bilheteria dos variados “De Pernas pro Ar” e, possivelmente, de “Minha Mãe é uma Peça”, também surge como um nome importante para se compreender o cenário contemporâneo do cinema nacional.

Ambas estiveram em Belo Horizonte para divulgar o filme, numa sessão de pré-estreia do Ponteio Lar Shopping — provavelmente, o shopping mais elitista da capital mineira, afastado tanto simbólica quanto geograficamente do centro e do movimento da cidade. Na ocasião, entre gritos de fãs histéricas, elas atenderam à imprensa, tiraram fotos e se juntaram às crianças e famílias que compareceram na exibição do longa.

Uma divulgação acentuada, duas protagonistas reconhecidas e uma narrativa que visa criar identificação no maior número possível de mães e filhas brasileiras alcançou resultados: em apenas duas semanas de exibição, o filme acumulou renda de 18,7 milhões de reais — superando em muito o seu pequeno orçamento de 6 milhões. Bilheteria expressiva que garantiu uma longa permanência do filme: “Fala sério, mãe!” esteve em cartaz mesmo após um mês de exibição, feito que poucos filmes do cinema nacional atingem.

Para além de dissertar sobre divulgação, números e renda, é importante entender o que “Fala sério, Mãe!” se propõe a fazer e apreciar o filme sob essas condições de pressão e temperatura. Pois, cinematograficamente falando, ele é fraco e enfadonho. Se o longa deseja causar identificação, ele consegue cumprir seu objetivo, mas o faz repetindo vários dos clichês das recorrentes Globochanchadas do cinema brasileiro — um termo pejorativo que escutei certa vez durante um festival de cinema e que, felizmente, nunca me fugiu.

A estética do longa reforça o que tento dizer. Seus planos fixos e pouco criativos — com belas exceções, há de se ressaltar — repetem um modelo televisivo de captura da imagem, cumprindo a função de demonstrar sem a necessidade de criar segundas ou terceiras relações. Sua narrativa, de um viver cotidiano sem demais surpresas, segue a vida de Ângela Cristina a partir do momento em que ela fica grávida de Maria de Lourdes, a Malu, e prossegue até a juventude da garota, já interpretada por Larissa Manoela. Logo, um espaço de quase duas décadas de vida é reduzido a momentos marcantes na trajetória de qualquer pessoa (desde que ela tenha as mesmas condições socioeconômicas das protagonistas), momentos estes pontuados pelos diversos saltos temporais que amarram a história mais pela necessidade de demonstrar o crescimento de Malu do que de efetivamente estabelecer alguma relação causal entre cenas.

Assim, o crescimento, a primeira ida à escola, o divórcio e os primeiros beijo e transa enumeram-se continuamente, acumulando situações e vivências sem necessariamente influir no desenvolvimento das personagens. Tanto que as controvérsias que incidem sobre a vida das protagonistas parecem previamente fechadas em torno do roteiro adaptado do best-seller de Thalita Rebouças, livro homônimo que originou o filme, dando um aspecto plano às personagens e fazendo com que as histórias exibidas pareçam aleatórias ao considerarmos o conjunto da obra.

No filme, Larissa contracena com seu não mais namorado, João Guilherme

Contudo, por mais que nos esforcemos em criticá-lo, o longa consegue se salvar por um singelo mérito. Ele causa identificação. E, em pouco mais de uma hora de história, consegue emocionar. É a representação dos clichês mencionados que fazem com que diversas mães, pais, filhas e filhos se reconheçam em tela, contribuindo para o envolvimento emocional com as personagens e a consequente afeição com ambas. Se isso ocorre com o dedo de Pedro Vasconcelos, o diretor, ou de Ingrid Guimarães, a faz-tudo, é difícil dizer. O certo é que a constante narração da própria Ingrid e da Larissa, em off, contribui para nos aproximar dos sentimentos daquelas que estão “verdadeiramente” vivenciando aquelas situações.

O que não sugere muita margem para a liberdade do espectador, vale mencionar. Afinal, é um elenco eminentemente branco representando os típicos personagens da classe média brasileira, longe da realidade de mais da metade de nossa sociedade diversa étnica, racial e socialmente. Por isso talvez possamos afirmar que a identificação pretendida é arbitrária e insistente: caso não espontânea, a relação entre identificação, empatia e emoção será efetivamente imposta na marra.

E eis aqui a complicação em que o argumento atinge: é injusto fazer com que os diversos espectadores do longa sonhem com uma realidade diferente da sua? Ou aproximar esse sonho, ao menos pela película cinematográfica, pode ser considerado uma boa atitude? É pedir demais que tais espectadores se identifiquem com personagens que não os representam? Ou podemos entender que o reforço de uma certa pedagogia fez com que esse questionamento, após tantos produtos, séries, filmes e novelas semelhantes, simplesmente perdesse sua importância?

Entramos assim no problemático limiar entre um cinema que se diz “político”, “autoral” e um cinema que se autodeclara “de entretenimento”, “popular” — embora ambas as definições sofram pela falta de uma significação precisa e pela certeira possibilidade de um julgamento preconceituoso. Afinal, categorizar filmes de acordo com essas duas caixinhas é reduzir a expressão de suas potencialidades. Ao mesmo tempo, as perguntas que coloco acima atingem o âmago da sociedade em que vivemos e do espetáculo cultural criado em torno das narrativas cinematográficas. Soa utópico pedir, por exemplo, que todo filme de massa, cujas condições de produção e divulgação estão em completa consonância com o atual modelo rentável de se fazer cinema no Brasil, erga bandeira em prol da diversidade representativa: mais fácil para ele, infelizmente, criar suas narrativas a partir da identificação por uniformização. Nos satisfazemos com pouco ao aceitar a posição confortável proporcionada por esses filmes sem questionar os processos que culminaram na sua ampla divulgação e aceitação de seus muitos milhares de espectadores. Não é a toa que minha mãe, minha irmã e suas amigas voltaram para casa como se tivessem assistido ao filme do ano. Enquanto eu, na perigosa posição de crítico, senti-me enrascar no complexo modus operandi da indústria cultural quando tudo que eu desejava fazer era poder rir, curtir e me emocionar com um filme que se propõe a fazer apenas isso.

A pergunta que faço e que me fiz ao terminar de assistir à “Fala sério, Mãe!” se resume em saber, minimamente, qual a função do crítico cinematográfico frente a uma obra que consegue ser fácil na narrativa e complexa em sua repercussão. Pois, por mais que a identificação construída pelo filme seja arbitrária, a relação criada com o reconhecimento em tela simplesmente basta para que diversas famílias apreciem o longa (assim como eu).

Durante uma conversa com o Fale de Cinema, Pedro Vasconcelos afirmou que procura encontrar um caminho do meio entre o cinema autoral e o comercial (ou, porque não dizer, entre aquele político e o de entretenimento) na produção de seus filmes. Para que o cinema de massa encontre a qualidade e o acuro cinematográfico, segundo ele, e para que o cinema autoral consiga o público necessário para uma boa recepção. Em “Fala sério, Mãe!”, o diretor procurou usar “aquilo que lhe afeta o coração” como ponte entre esses dois mundos:

Resposta estranha, argumento esquisito. Mesmo que seja natural encararmos aquilo que não nos é palpável com uma certa incredulidade, não me sinto confortável ao considerar que o afeto do diretor atue como uma desculpa para o que mais pareceu ser uma invisibilização de sua figura. Frente a tantos pontos problemáticos, uma presença mais incisiva poderia ter feito com que o filme escapasse aos clichês de sua representação.

Enquanto isso, “Fala sério, Mãe!” é lançado em DVD e em alguns serviços de streaming, distribuindo sonhos e perspectivas para muitos que não compartilham daquele universo. Isso é cruel? Possivelmente sim. Por conta disso, o filme deve ser condenado, isoladamente, culpado? Não sei dizer.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.