High Rise, de Ben Weathley

Uma distopia arquitetônica e uma crítica à sociedade moderna e espetacularizada

Guilherme Santiago
Fale de Cinema
11 min readJan 14, 2017

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Baseado na obra de J. G. Ballardian, escrito na década de 70, o diretor Ben Weathley manteve a ambientação da época em que o livro foi escrito. High Rise contém uma estética vintage e coloca em pauta as relações sociais num espaço construído onde a existência coletiva se transforma em disputa de classes sociais. Com referências que vão de Scorsese a Cronenberg, o filme apresenta uma nova forma de distopia cinematográfica, a arquitetônica.

A obra retro-futurista se inicia com um epílogo certificando que os moradores do arranha-céu estão vivendo um futuro que já aconteceu. O monólogo de um narrador exibe um estado pós-apocalíptico, cujos moradores manifestam prevaricação e autodestruição num espaço projetado que deveria dar certo, mas não deu.

High Rise é um filme que pode ser caracterizado como cinema moderno, sem ordem cronológica, com elementos estéticos que provocam o entendimento da obra e ideias que não são explicadas através de diálogos. O próprio monólogo que trata do ponto de vista do personagem principal deixa um pouco a desejar diante de toda a narrativa que se constrói mais pela sequência de imagens que, de fato, pelo o que está sendo dito.

“Apesar de todas as inconveniências, Lang estava satisfeito com sua vida no arranha-céu”.

O filme se propõe a criticar, de forma nada sutil, mas metafórica, toda construção da vida moderna e capitalista — desde a promoção e venda de lugares utópicos para se viver à disponibilização de inúmeros serviços que preenchem a vida de um ser humano num ambiente social em que as próprias relações, particulares da natureza humana, são podres.

O filme contém também um discurso crítico à arquitetura moderna, baseada nos princípios de alguns arquitetos como Le Courbusier e Niemeyer, que se preocuparam em resolver a questão básica da civilização do século XX: projetar grandes blocos habitacionais verticalizados para abrigar inúmeras pessoas sem qualquer perda de qualidade de vida.

Esse modelo de construção, que se espalhou para maioria das cidades recém-urbanizadas pelo mundo e que na obra é apontado como esse modelo de conjunto habitacional, leva em consideração as diferenças sociais de quem pode, quem não pode pagar e quais privilégios essas pessoas podem usufruir dentro desse sistema.

Entretanto, a crítica do filme não se limita apenas ao modelo arquitetônico construído, mas também ao tecido urbano e as relações de interno-externo dos apartamentos e das áreas em comum. Integrar este tecido implica em encontros casuais e na capacidade humana de lidar com objetos e situações em meio à vida cotidiana. Aqui, os moradores do filme parecem lidar com a cotidianidade razoavelmente bem até que o próprio sistema, como infraestrutura, começa a apresentar falhas.

Pensando nisso, pode-se fazer uma ligação ao conceito que Walter Benjamin já disse quase um século atrás: “cidades são campos de batalha”. O filme busca então, de forma mais alegórica, a materialização potencializada da podridão que uma sociedade pode manifestar quando é colocado em pauta seus privilégios e quem é merecedor ou não da apropriação dos espaços existentes.

O arquiteto responsável pelo arranha-céu mantém uma posição de visionário, quase como um Deus, ou Mônada — o responsável por ter colocado todos os suprimentos e necessidades de uma vida dentro de um edifício. As pessoas que foram viver neste lugar compraram seus apartamentos entorpecidas pela ideia de futuro e modernidade. Elas não precisariam mais sair. Havia uma auto-gestão do espaço através dos moradores. Mas o próprio arquiteto, que vive no último andar, não gerencia o lugar. Apenas mantém seu posicionamento de visionário. Ninguém administrava. Até que o próprio ambiente começou a ter falhas. Primeiro o elevador, depois energia, suicídio, água, suprimentos, festas sem fim, morte de um cachorro, brigas, violência… E então, a competitividade entre as classes.

Alegoricamente, o filme fez do arranha-céu uma pirâmide de hierarquia social, mantendo os mais pobres embaixo e os ricos vivendo nos andares mais acima. Até que, em um certo momento, os que viviam mais embaixo quiseram reivindicar essa configuração e os direitos dos outros. E a sociedade, já acostumada a viver sempre com um tipo de governo, ou a própria ausência deste, começa a se debater diante dos problemas crescentes e a falta de participação por parte de quem se denominava o criador.

Com uma luta cada vez mais eminente, os ricos consumaram um pensamento colonizador de desintegrar e desconsiderar a estrutura familiar e moral dos pobres, exterminando as ameaças e, através de uma clara misoginia, os homens começaram a capturar as mulheres e transformando-as em objetos para serviços domésticos e sexuais.

Enquanto os ricos se apropriaram de todos os espaços, segregando quem poderia ou não integrá-lo, capturando todos os suprimentos e fechando todos os serviços disponíveis, os pobres começaram a enfrentá-los, até que em determinado momento, já não era possível identificar quem estava em posições dominantes. Ambos lados estavam sucumbindo.

Desse modo, eles se perdem. Depois de longas cenas de violência e sexo, cada local projetado foi reconfigurado e já não tinha o mesmo propósito inicial. Não era possível reverter a condição daquele espaço e o modo de vida anterior. Como se tivessem se tornado selvagens. Por exemplo, as pessoas lavando roupas na piscina, como se fosse um lago em uma era em que mulheres e crianças habitavam pequenos córregos para cuidar das necessidades domésticas básicas. Enquanto outros se alimentam de seus próprios cães.

Este momento mostra o quanto todos estavam confortáveis com suas condições e atividades desvirtuadas de um modus operandi imposto e construído culturalmente pela sociedade.

Os perfis da modernidade

Sobre a crítica à modernidade, o diretor se preocupou também em ressaltar o modo individualizado e as personalidades peculiares de cada personagem. Ainda que todos eles vivessem juntos, em comunidade, cada um se expressava naquele espaço à sua própria maneira. Combinando personalidade, estética e cores, o diretor conseguiu traçar diferentes perfis sociais dentro do arranha-céu.

O Laing, personagem principal interpretado por Tom Hiddleston, entra com uma posição central no filme, deixando a entender que ele enxergaria todas as rachaduras existentes naquele espaço que estava prestes a ruir. E que, ainda, resolveria todos os problemas antes que acontecessem. No entanto, pelo filme tratar de uma crítica à modernidade — e o Lang cumprir bem esta personificação moderna bem sucedida meritocraticamente — , o personagem não deixaria de cuidar de seus bens pessoais e materiais para resolver o problema no qual acompanhou e previu desde o começo.

- Viver num arranha-céu requer um comportamento específico. Conformado. Contido. Talvez até um pouco louco. Os mais perigosos são contidos como você. Impermeáveis às pressões psicológicas da vida num arranha-céu. Profissionalmente destacados. Prosperando como uma espécie avançada em atmosfera neutra.

- Sinto muito que pense assim.

- Não sente, não.

- Talvez esteja certo.

Charlotte, interpretada por Sienna Miller, é retratada como uma mulher independente, característica do cenário de libertação sexual europeu pós anos 60. Boêmia e mãe solteira, demonstra não ter nenhuma estrutura de administrar a própria vida — como se esperava em uma sociedade machista nos primórdios da independência feminina — , porém, revelou-se como a personagem que mais conhecia o prédio e suas hierarquias presentes. Charlotte também teve seus planos e figurinos montados para parecer uma personagem da Nouvelle Vague francesa, bem característica das personagens criadas por Godard.

Luke Evans, no papel de Wilder, é personificado como um típico americano de meados dos anos 70. Além das características físicas, ele era imprudente, pai de família ausente, bêbado, machista e violento.

Helen (Elisabeth Moss), esposa de Wilder, representa uma mãe do século XX, dona de casa e que está sempre grávida do próximo filho, ao ponto da gravidez a afastar do marido, fazer com que ela sinta a sua ausência e, por fim, a própria solidão em meio aos filhos. Ainda que os ame, todos eles não são suficientes diante do que o arranha-céu oferece e, para se sentir menos excluída, não abdica da bebida e dos cigarros na gestação.

Toby (Louis Suc), a criança introvertida e filho de Charlotte, não consegue fazer amigos com os demais. Porém, demonstra uma peculiar curiosidade que o faz criticar todos os adultos a sua volta. Questionador, ele duvida da religião, do sistema econômico e enxerga a violência como instinto natural do ser humano.

O arquiteto (Jeremy Irons), mestre, criador, gênio é aquele que vive no ponto mais alto do edifício e todos esperam uma posição. É intocável até o momento em que a sociedade entra em conflito e sua autoridade é questionada.

Em um dado momento do longa, Laing e o arquiteto conversam sobre o planejamento do gigante condomínio em construção — que, na verdade, são 5 torres, formando o desenho de uma mão, mas o filme se passa apenas na única torre finalizada, que fica no dedo indicador — , Laing menciona então sobre o desenho: “parece o diagrama acidental de algum evento mediúnico”. Isso afirma mais uma vez a posição de sábio do arquiteto, como um personagem que transpõe a capacidade humana de pensar logicamente e que se relaciona espiritualmente, como um dom médium. Trata-se de um tipo de relação muito presente na sociedade em que vivemos: associar forças espirituais que vão além da capacidade humana. A obra acerta nisso, pois, ainda que ela trate das relações humanas de maneira tão crua, não ignora o fato de existirem crenças sobrenaturais que entremeiam as nossas relações.

Simmons (Dan Skinner), braço direito do arquiteto (que não se importa com ele), sente-se parte de tudo, como um soldado que enfrenta todos para manter a ordem. Mas que depois, pela ausência de poder, rebela-se contra o mestre dizendo que o edifício é o único líder de tudo e que deve deixar o imóvel guiar as ações e o futuro dos moradores.

Outras mulheres que existem no filme, no geral, são representadas como objetos sexuais, meras reprodutoras, sem posições de poder e aliadas a homens. No fim, unem-se para vingar a morte de um Deus ausente, mas logo depois retornam à posição misógina imposta pela sociedade.

Já a esposa do arquiteto (Keeley Hawes) não tem o nome mencionado em nenhum momento. O próprio arquiteto refere-se a ela como “sandice”, ou seja, aquela que se manifesta e se comunica através de tolices. Sua personificação é quase a de uma deusa, porém bucólica, introvertida e infeliz, que vive de memórias e é ambientada em uma era medieval. Ela não manifesta postura dominante em nada, apesar de esposa do dono. A personagem parece se abdicar de qualquer posicionamento, até mesmo sobre o filho de seu marido com Charlotte.

O Começo do Fim

A última cena acompanha Toby sentado em uma cadeira ouvindo um rádio criado por ele mesmo no estado pós-apocalíptico do edifício. Ali, ele escuta o seguinte depoimento da Margareth Tatcher:

“O sistema de liberalismo empresarial é algo necessário, mas não suficiente. Há apenas um sistema econômico no mundo e é o capitalismo. A diferença está na presença do capital nas mãos do estado ou se a maior parte da fatia está com pessoas fora do alcance do estado. Onde há capitalismo de estado, nunca haverá liberdade política.”

A ideia desse final sugere que ainda que o projeto arquitetônico fosse válido, não era suficiente por falta de um sistema político de gestão do espaço. A presença superestimada do arquiteto como governante e a ausência do mesmo, provocou uma crise interna movida pela disputa dos espaços, característica bem natural do ser humano. Entretanto, o depoimento da Dama de Ferro pontua que o espaço não poderia ser gerido por uma só pessoa, mas por várias segmentadas dentro do sistema. Mesmo que o arquiteto se posicionasse como ser supremo, não funcionaria. Enquanto existir uma potência ou supremacia que controle um sistema, haverá a iminência de ruína.

High Rise mostra que todas as peculiaridades de cada personagem, com suas características distorcidas, validam a construção de um tecido urbano que é capaz de existir e ser gerido com todas essas diferenças. A espera de um Deus que resolveria todos os problemas sociais, financeiros e, principalmente, de ocupação dos espaços é o que destruiu toda a utopia fomentada no início do filme.

A obra deixa a sensação de que tudo foi uma grande festa infantil que saiu do controle (apesar da cena do aniversário da criança não ser a única desencadeadora de tudo aquilo), mostrando várias particularidades da vida moderna, como festas, encontros cada vez mais recorrentes e a inserção dentro de um espaço que cega os moradores para a vida externa ao condomínio. As principais pessoas que se perderam foram aquelas que deixaram de frequentar outros espaços da cidade. Podemos ver isso na cena em que o Laing, saindo do condomínio depois de muito tempo, direciona um comentário ao Wilder: “eu não consigo me lembrar onde deixei meu carro” ao que ele responde: “que engraçado, eu também”. Aqui, vemos uma crítica às pessoas em relação à inserção delas nesse meio no qual, compradas pela promoção de uma mercadoria utópica, tornam-se parte do espaço ao ponto do desejo de apropriação sobressair quaisquer outras vontades, alimentando então uma crise de posses.

As relações cada vez mais intensas entre moradores e condomínio, instiga o espectador a reparar a capacidade dos adultos em serem imaturos, respondendo impulsivamente a situações em que a própria moral é colocada em jogo. Como se de repente, as pessoas se esquecem de como responder aos espaços construídos para agir civilizadamente. Em outras palavras, o filme mostra como as pessoas se entregam a uma lógica mais poderosa que a razão.

Ainda assim, esta obra pede uma análise e pesquisa muito mais profunda, principalmente em termos sociais e políticos, que perpassam esse texto breve. Além do que foi decorrido, o filme contém mensagens semióticas e referências em diversos planos e elementos que futuramente merecem ser estudados. Por fim, existem outros personagens bastantes caricatos que integram a sociedade moderna e também merecem atenção. No mais, vale muito a pena passar por este condomínio e debruçar-se sobre tudo o que ele tem a nos dizer.

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