Joaquim e a(s) história(s)

Precisamos de uma visão mais fresca sobre a(s) história(s) brasileira(s)

Laura Batitucci
Fale de Cinema
5 min readApr 18, 2017

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“Pelo Monte Claro,
pela selva agreste
que março, de roxo,
místico enfloresce,
cavalga, cavalga
o animoso Alferes.”

— Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência

Quem completou a educação básica no estado de Minas Gerais sabe que a Inconfidência Mineira, por aqui, é ensinada com orgulho. Até as ruas de um bairro nobre de Belo Horizonte trazem os nomes dos inconfidentes, que deixaram a sua marca não só na história mineira como na história brasileira como um todo. A pergunta que sempre fica é: qual versão da história da Inconfidência nós estamos ensinando e aprendendo? E, principalmente, qual a relevância de continuarmos ensinando e aprendendo dessa maneira?

Uma certa narrativa histórica nunca é a única possível dentre a miríade de fatos intrincados que regem o viver social e político de uma nação. Porém, normalmente, temos (e aqui abro um parênteses para esclarecer que o “nós” deste texto são pessoas não-especialistas em História) acesso a apenas uma, ou, no máximo, duas narrativas históricas apenas. Além disso, não é incomum perceber que várias pessoas reais, que são seres irredutíveis em suas complexidades, tornam-se meros personagens, que muitas vezes nem mesmo são respeitados em sua tridimensionalidade. Um exemplo claro disso é como a narrativa da vida de Tiradentes foi, primeiro pela República Velha e depois pela ditadura, reduzida a um herói mítico, com ares de Jesus, e utilizada para criar um senso de unidade e simbolismo brasileiro. Até um feriado nacional em sua homenagem foi instaurado a partir de 1965 (vocês conseguem se lembrar de algum outro personagem histórico e não-religioso que tenha um feriado só pra ele? Pois bem).

Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo (1893). O simbolismo religioso sempre acompanhou a releitura mítica da República Velha sobre a vida de Joaquim, que aqui, e em várias pinturas, se assemelha a Jesus

Felizmente, o novo filme de Marcelo Gomes, Joaquim, evita essa tradicional moldura heroica e apresenta uma versão muito diferente, narrando o homem Joaquim José da Silva Xavier (interpretado pelo ator Júlio Machado). O filme inicia-se em sua vida de alferes, centra-se principalmente em uma missão sob as ordens da Coroa portuguesa ao “sertão proibido” na procura de ouro, e finaliza-se logo antes dos eventos que conhecemos sobre a Inconfidência Mineira: Tiradentes e os outros inconfidentes se conhecendo e articulando as primeiras conspirações para a revolução que se daria (mas não se deu, visto que foi delatada) na noite da insurreição. A obra também traz como pano de fundo a relação entre Joaquim e a escrava Preta (Isabél Zuaa), que, até onde sei, trata-se de um aspecto ficcional e não histórico.

Já no início do filme, é possível perceber que Marcelo Gomes deseja apartar sua versão de Tiradentes da versão já canonizada em uma cena na qual Preta corta os cabelos longos de Joaquim. Dando bastante tempo a essa sequência que dura alguns minutos em tela, o cineasta permite que o espectador absorva essa nova aparência, a qual muito provavelmente não está acostumado uma vez que lhe foi martelado o simbolismo “Tiradentes = Jesus” desde sua infância. Daí para frente, pelo efeito que essa cena causa, o espectador entende que vai ver uma nova versão de uma história antiga — uma versão que acaba se tornando deveras interessante pela sua força narrativa.

O Joaquim de cabelos curtos de Marcelo Gomes

O Joaquim deste filme é perturbado, constantemente, pela sua sede de encontrar ouro para que possa, talvez, ser elevado a tenente na hierarquia militar e também conseguir uma parte desse ouro para si. Posteriormente, devido a percalços na sua missão, (e aqui vão alguns spoilers, se é que isso é possível em um filme como este, mas vai saber) esses pensamentos se transformam gradualmente em raiva em relação à Coroa e aos seus impostos de exploração.

Raiva é, aliás, a principal emoção que nos guia na jornada de Joaquim, porque é sempre a responsável por disparar decisões do personagem que geram grandes mudanças na direção narrativa. O filme segue bastante seu protagonista na tonalidade e no ritmo, prosseguindo, como ele prossegue, frequentemente em “trancos”, como um animal que é atiçado e corre em direção a algo, logo depois diminuindo o passo, apenas para ser atiçado novamente. Diversas vezes, esse momento de “corrida” do longa representa uma epifania disparatada de seu protagonista, que procura seu objeto de desejo como um louco apenas para perceber que não poderá obtê-lo — seja esse objeto uma mulher, ouro, ou, no final, a liberdade.

É nos aspectos em que o longa desvia das narrativas tradicionais, que recontam a época colonial e da Inconfidência, que ele se torna mais rico. Adições importantes aqui são as subtramas (que, infelizmente, ainda são “sub”: adoraria ver um filme que tratasse da vida dessas etnias no contexto colonial) do negro João (interpretado por Welket Bungué), que é escravo do alferes, e do índio Inhambupé (Karay Rya Pua), que guia a trupe de Joaquim pelo “sertão proibido”. Além disso, o filme traz um retrato plausível dos quilombos e dos quilombolas, que, apesar de não tomarem a proporção na narrativa que provavelmente tomaram na época para a vida do brasileiro do século XVIII, são mostrados de maneira respeitosa e têm um papel importante na trama do protagonista.

Como único, mas não menos importante, ponto negativo, eu destaco (novamente, spoilers) a necessidade do cineasta de, para iniciar um dos processos raivosos de Joaquim, retratar o estupro da escrava Preta por outro homem. Se, ao final, isso se revela também importante para a própria personagem, pois foi o que a motivou a fugir para os quilombos, isso é irrelevante: não só porque estamos cansadas de nos ver, como mulheres, representadas como “mais interessantes” ou “mais profundas” devido a um episódio de abuso sexual, mas porque, no longa, isso serviu principalmente ao personagem masculino, que ganhou, com essa estratégia que já se tornou um clichê, um impulso e um objeto de desejo novo. O que a presença desse evento no roteiro parece mostrar é que não é suficientemente ruim alguém ser submetido a um regime escravo de trabalho, mas também é preciso um abuso sexual para que aquela pessoa pense em fugir ou se libertar de alguma forma.

Apesar disso, Joaquim é um filme relevante na medida em que desafia os tabus e estereótipos históricos que rodeiam a Inconfidência e tem um grande mérito ao pensar nas causas de um pensamento revolucionário em um indivíduo. Num momento em que revoluções são escassas e opressões se amontoam, entender e mostrar esse processo individual de libertação se torna essencial, assim como entender a multiplicidade da nossa própria história e qual versão estamos escutando.

“Agora, tudo
jaz em silêncio:
amor, inveja,
ódio, inocência,
no imenso tempo
se estão lavando…”

Cecília Meireles — Romanceiro da Inconfidência

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