Lady Bird

A força das nossas relações

Laura Batitucci
Fale de Cinema
5 min readFeb 17, 2018

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Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

“Como Nossos Pais” — Belchior

Há detalhes do filme a seguir, cuidado com possíveis spoilers

O que acontece em nossa adolescência de mais importante? É o que aprendemos na escola, são os hábitos que começam a nos formatar, é a nossa descoberta da arte, é a carreira que escolhemos para o resto das nossas vidas? O que desse turbilhão de emoções fica como grande, quiçá o maior, aprendizado?

Não há resposta óbvia, mas “Lady Bird — A Hora de Voar”, novo filme de Greta Gerwig (mais conhecida pelos seus papéis como atriz, como em “Frances Ha”, de Noam Baumbach), arrisca dizer que o mais importante que levamos são as relações que estabelecemos, e a forma como as tratamos. “Lady Bird” é o apelido autoconcedido de Christine McPherson, uma adolescente de 17 anos no último período do colegial (o que corresponderia ao terceiro ano do nosso ensino médio). Suas atribulações familiares, sociais e amorosas são dispostas de forma orgânica, com um cuidado excepcional de construção de personagens — o que não poderia ser diferente em um filme que deseja analisar como as relações entre eles acontecem.

Saoirse Ronan (indicada ao Oscar de Melhor Atriz) interpreta Lady Bird com a vitalidade e a instabilidade que a personagem pede. Do início, a vemos chorar com “As Vinhas da Ira”, ao lado da mãe (Laurie Metcalf, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante), e, minutos depois, se jogar do carro em protesto às imposições dela. A relação entre as duas, aliás, é um dos pontos altos do filme: o embate de gênios igualmente fortes é a realidade de muitas relações mãe-filha. A mãe, Marion, faz de tudo para imbuir na filha a consciência de sua classe e da situação de sua família, que sempre tem que contar os centavos ao final do mês; enquanto isso, a filha, com vergonha de sua situação perante os amigos ricos, interpreta os esforços da mãe como mera forma de podá-la. O filme é eficiente em nos mostrar que a situação tem dois lados: se simpatizamos com Marion, cujo semblante só fica progressivamente mais cansado, também somos capazes de entender a postura da filha, mesmo que saibamos que esta está errada ao voltar sua raiva à mãe. A incapacidade de comunicação entre as duas culmina nos rascunhos de carta escritos pela mãe quando a filha parte para a universidade — há uma vulnerabilidade naquela mulher que sua face silenciosa tenta esconder; há um medo de que sua filha esteja partindo não porque quer alcançar novos sonhos, mas porque a odeia e odeia a sua própria família.

Sua relação com a melhor amiga, Julie (Beanie Feldstein), também é ponto-chave do filme. Elas têm uma afinidade inegável e, pelo que é implicado no filme, um histórico de anos de amizade — porém, Lady Bird não hesita em colocá-la de lado por alguns meses para fazer amizades mais “úteis” aos seus propósitos (desfrutar de bens materiais, que nunca teve; de popularidade, que nunca teve; e se aproximar de um interesse amoroso). Porém, a sombra de Julie, a amiga renegada, fica em sua consciência, até que ela percebe, ao final do ano, que ela é a mais duradoura e importante das relações que estabeleceu no colégio. Lady Bird fica mais crível ao errar e ser imatura como uma adolescente qualquer, Christine fica mais crível ao reconhecer seus erros e admiti-los.

Por último, e não menos importante, as relações amorosas da jovem Lady Bird se assemelham, em muito, ao tipo de relação que acontece quando somos jovens — porém, do jeito particular dela, que não tem vergonha alguma de abordar os pretendentes diretamente com um “oi” e puxar qualquer papo possível com eles. Os alvos de sua atenção são, respectivamente, Danny (Lucas Hedges, que também está em “Três Anúncios para um Crime”) — um jovem que ainda não se descobriu muito bem — e Kyle (Timothée Chalamet, que também está em “Me Chame pelo Seu Nome”) — um jovem soturno e calado, afeito a temas polêmicos. O que se destaca é a maneira como Lady Bird lida com as emoções que ambos provocam nela: sua felicidade ao finalmente beijar Danny, dando um grito de vitória na frente de sua casa (gif); sua tristeza ao perceber que Kyle havia mentido para ela. Os nomes dos garotos escritos a caneta na parede acima da sua cama são riscados, e depois, ao final, uma tinta branca passa por cima deles, como símbolo da virada de página, da folha em branco que a vida adulta traria a essas experiências iniciais.

Honestamente, não sei se “Lady Bird” é o melhor coming-of-age e nem se ele “mereceria” a tão-falada nota do Rotten Tomatoes. Acredito que o filme tem algo muito específico a acrescentar na miríade de obras com a mesma temática — e não é comum, por exemplo, que vejamos, em filmes sobre a adolescência, um retrato tão gentil de uma escola católica, que costuma ser apenas um obstáculo para os desejos de jovens pubescentes. A religião entranhada na cidade (que não leva o nome de “Sacramento” por acaso), na família de origem irlandesa, ou na escola é apenas mais uma faceta de Christine, que nunca, em si, teve uma relação muito importante com essa instituição, mas a leva como lembrança do cenário onde suas relações da adolescência aconteceram. Esse elemento, entre muitos outros, mostra que o filme é eficaz em destituir símbolos já relativamente estabelecidos por esse tipo de obra e ressignificá-los de acordo com as visões e perspectivas daquela adolescente em particular.

No início do filme, a “passarinha” se imagina amarrada pelos pés pelas pessoas daquela cidade. Sua visão sobre Sacramento, como a visão de muitos sobre suas cidades interioranas de origem, é de uma grande gaiola, desprovida da energia e da cultura que o seu destino, em uma universidade renomada de uma grande cidade, ofereceria. Ao final, ela entende que aquelas pessoas, e toda a sua experiência com elas, são aquilo que lhe dá forças para voar. Se ela não é exatamente uma “pássara”, uma adulta, ao final do filme, ela com certeza está pelo menos no processo de entender o que isso significa.

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