Mulher Maravilha e a Jornada da Heroína

Um monomito?

Laura Batitucci
Fale de Cinema
8 min readJun 6, 2017

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No estudo das narrativas, é mais do que comum encontrar a análise de certos personagens ficcionais de acordo com a Jornada do Herói. Tal teoria foi criada por Joseph Campbell e é descrita de forma detalhada e com muitos exemplos no livro O Herói de Mil Faces.

Imagem de sobresagas.com

Basicamente, funciona assim: um homem comum, vivendo num mundo comum, é chamado à aventura devido a algum acontecimento que o força a sair do seu lugar. Um mestre o fornece ajuda para que o homem vá à aventura; logo depois, ele entra num mundo especial, com regras especiais, as quais precisam ser aprendidas e internalizadas por ele por meio de provações e testes. Há um momento em que o homem precisa sobreviver a uma crise mais intensa, que, se superada, vai oferecer uma recompensa a ele, e tal tesouro será levado de volta ao mundo comum. Nesse retorno, o homem não será o mesmo, visto que passou por desafios e aprendeu algo que mudou sua essência e personalidade. Assim, ele viverá uma vida nova e mais realizada no seu mundo original.

É muito fácil reconhecer vários produtos da indústria cultural (dentre séries, filmes, livros e jogos) como exemplos dessa forma de narrativa. Apenas considerando exemplos recentes, temos três heróis cujas jornadas se encaixam bem na teoria de Campbell: Harry Potter, Luke Skywalker e Frodo. Não é à toa a grande frequência desse mito nas culturas universais —tanto que a Jornada do Herói é chamada também de “monomito”. Campbell explica esse fenômeno se utilizando de teorias psicanalíticas, comparando a Jornada do Herói a ritos de passagem.

Os chamados ritos [ou rituais] de passagem (…) têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, p.12)

O “intervalo de isolamento” explicitado por Campbell claramente se refere à passagem pelo “mundo especial”, que se contrapõe ao “mundo real” na Jornada. A impermanente estada nesse mundo, portanto, serve para que o “aventureiro da vida”, nas palavras do autor, aprenda sobre quais características psicológicas devem ser mudadas ou amadurecidas para ser bem sucedido em seu mundo originário. Campbell estava se referindo a mitos e rituais presentes em tribos, mas não só: a vida contemporânea também comporta tais passagens. Alguns ritos são versões atenuadas da lógica tribal, como trotes universitários, em que os “calouros” aprendem lições práticas de convivência social; alguns, porém, estão bem próximos do que foi descrito, como períodos pré-guerra em que os soldados se isolam em treinamentos e na construção de uma nova mentalidade para enfrentar o “novo mundo”.

Quando essa lógica é presente em histórias de fantasia ou aventura e comercializada em forma de entretenimento, observa-se uma reafirmação de sua validade, o que tem um efeito direto na forma de enfrentar desafios dos espectadores; é possível afirmar que a indústria cultural, então, com uma função educadora, transmite os valores presentes nessa Jornada. Seria ingênuo dizer que a Jornada do Herói não está profundamente inserida em uma ideologia meritocrática, que imagina que todos, ao enfrentarem grandes provações, não apenas serão recompensados com tesouros mas serão transformados, necessariamente, em pessoas melhores pela própria experiência. Isso é, inclusive, uma das razões pelas quais treinamentos de “coaching” e outras terapias a utilizam para tentar convencer as pessoas de que, com trabalho duro e determinação, sempre haverá alguma forma de crescimento e recompensa.

Porém, há um problema tanto na ideia meritocrática na qual a Jornada se inspira quanto nas histórias produzidas de acordo com esse método: o mundo não funciona exatamente assim para todos. Para muitos desprivilegiados, não é necessário adentrar um “mundo especial” para que haja provações, e tais provações, apesar de muitas vezes serem superadas, não recompensarão essas pessoas da mesma maneira que recompensam outras. Os heróis da indústria cultural, portanto, quase nunca são representados por minorias sociais. Além do problema da sub-representação, os realizadores dessas obras sentem que o homem branco majoritário seria naturalmente ideal para performar a trajetória da Jornada, visto que, dentro do sistema em que vivemos, eles são os protagonistas sociais.

Então, se a Jornada do Herói se aplica, na maioria das vezes, a protagonistas masculinos, o que dizer de filmes e livros que trazem protagonistas femininas? Algumas poucas vezes, elas performam Jornadas do Herói, mas muitas vezes suas histórias são diferentes, devido aos obstáculos que a socialização feminina colocou em seus caminhos para que elas não seguissem trajetórias parecidas com as dos homens e tomassem seus lugares.

Imagem de nexo.com.br

Maureen Murdock, uma aluna de Joseph Campbell, percebeu essa diferença nas jornadas de homens e mulheres na mitologia e desenvolveu, em The Heroine’s Journey: Woman’s Quest for Wholeness, a teoria da Jornada da Heroína. Nessa teoria, a separação entre o papel feminino e o papel masculino é equivalente à separação de Campbell dos mundos “real” e “especial”. Funciona assim: uma mulher comum é separada do papel feminino, que pode ser representado por uma figura materna, e assume um papel masculino. A partir daí ela vive algo parecido a uma Jornada do Herói, enfrentando provações e tendo sucesso em superá-las, porém, esse sucesso é apenas uma ilusão, e isso é mostrado a ela em um momento de frustração com esse novo modelo de vida. Daí, ela se encontra com a “deusa”, uma representação do feminino, e se reconcilia com esse papel, normalmente perdoando a figura materna que foi enfrentada no começo da narrativa. Com isso, ela é capaz de perdoar também seu lado masculino, que ela entende ser essencial para sua personalidade, e une os dois papéis na fase final.

Esse arco narrativo reconhece que a mulher vive em constante contradição entre as expectativas de cumprir um papel feminino, normalmente impostas a ela por outras mulheres, e a hierarquização presente na sociedade machista, que considera os valores masculinos como muito superiores aos valores femininos. Porém, isso só acontece devido a uma socialização ocorrida desde a infância, em que somos obrigados a nos reconhecer como a identidade masculina ou a feminina, sem questionar essa separação binária. Mesmo não discutindo as razões dessa separação, Murdock a inclui em sua teoria, o que é um avanço por si só ao enxergar a mulher como uma possível protagonista.

Desde a criação da teoria da Jornada da Heroína, vários produtos culturais já foram associados a ela: histórias fantásticas, como Jogos Vorazes ou Star Wars VI: O Despertar da Força, ou mesmo histórias que não se encaixam no gênero da fantasia, como Legalmente Loira. De uma forma ou de outra, os elementos da Jornada de Murdock estão nos filmes apresentados, que às vezes também se misturam com elementos da Jornada do Herói, afinal, arquétipos nem sempre são seguidos à risca.

Finalmente, chegamos a Mulher Maravilha. Depois de uma longa tradição, renovada nos anos 2000 a partir de X-Men: O Filme, de super-heróis no cinema, em 2017 temos o primeiro longa em uma década inteiramente dedicado a uma super-heroína. Apesar de a D.C. ter conseguido a dianteira, a Marvel também promete seu primeiro filme com uma protagonista mulher, Capitã Marvel, para 2018.

Onde, então, Mulher Maravilha se encontra ideologicamente e narrativamente em relação às Jornadas? Susy Freitas, em sua crítica do filme, traz uma comparação interessante (com spoilers!) da trajetória de Diana Prince com a Jornada da Heroína, relacionando eventos no filme com elementos da Jornada estabelecida por Murdock. Porém, nesse texto de Renata Corrêa, também com spoilers, a autora se refere à jornada da protagonista como “campbelliana”, indicando que a história foi feita nos moldes da Jornada do Herói de Campbell.

Ao tentar encaixar Mulher Maravilha nas jornadas clássicas, como fizeram as autoras acima, me deparei com problemas. Ela não performa uma Jornada do Herói pois não há a necessidade de melhoria de sua personalidade para um eventual retorno ao mundo original: ela já é incrível desde o momento que sai de Themyscira, e (spoilers!) não retorna à sua terra natal no final do filme. Também não acredito que a história se encaixe completamente em uma Jornada da Heroína, por um fato principal: Diana não foi ensinada que existem valores inerentemente femininos e masculinos, não da maneira machista e hierarquizante que aprendemos esses valores na sociedade real. A protagonista aprendeu, com as amazonas, que é mais do que natural que uma mulher lute e seja parte ativa da sociedade, tanto que, ao chegar em Londres, age de acordo com esses ideais e tenta assumir papéis “masculinos” sem nem saber que existe essa distinção. Assim, para ela, não há uma separação clara entre masculino e feminino, portanto, não existe uma trajetória psicológica em direção ao feminino que estaria “quebrado” dentro dela. Para a sociedade, por fora, talvez Diana esteja sim performando uma Jornada da Heroína, pois assume características atribuídas ao masculino, mas não há o elemento psicológico essencial na teoria de Murdock.

O maior mérito de Mulher Maravilha, então, é subverter as jornadas clássicas do herói e da heroína, e trazer uma ideia nova, que soa bastante utópica para nós, habitantes de uma sociedade cheia de preconceitos e de limitações às mulheres: e se fôssemos criadas sem as amarras de um sistema patriarcal? E se fôssemos socializadas para sermos as melhores pessoas que pudéssemos, e não apenas as melhores esposas/mães/personagens secundárias?

Desde a criação da personagem de Diana, em 1941, ela é um símbolo não só da força feminina: ela é um símbolo do progresso, do ideal de mulher livre e independente, que, à época, serviu para legitimar o movimento sufragista. Até hoje e durante um bom tempo ainda, vivemos e viveremos em uma sociedade que, apesar de estar se libertando gradualmente de suas correntes, humilha as mulheres e as inferioriza. O papel cultural do filme Mulher Maravilha, que em pleno 2017 ainda é pioneiro culturalmente, é renovar o símbolo que a sua personagem principal trazia desde 1941 e, através de uma utopia fantástica, nos dizer: como seria a sociedade se ela, ao invés de dificultar, favorecesse a criação e a existência de mulheres-maravilha, de mais Dianas?

Espero que a resposta desse filme, entre as mulheres, seja esperançosa: podemos sim nos inspirar na Mulher Maravilha e nas amazonas. Podemos sim realizar feitos incríveis sem nos preocuparmos se estamos nos conformando a papéis limitantes de gênero. Podemos sim reconhecer os problemas do sistema machista desse mundo mas criar nossas meninas para serem livres dessas amarras. Podemos sim.

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