Naomi Kawase:

o olhar e o toque que as imagens nos dão

Marco Melo
Fale de Cinema
5 min readJun 14, 2017

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“filmo para me sentir viva” — Naomi Kawase

Naomi Kawase, antes de realizar seus filmes de ficção, gravou uma série de filmes conhecidos como “privados” ou, como ela se refere a eles, “filmes-memória”. Em Em seus braços, considerado o primeiro, ela exerce a tentativa de entender sua própria existência, a partir do fato de ter sido abandonada pelos pais biológicos. Entre a dor de ser e o assombro de estar, Naomi revela um autorretrato turvo em um filme esburacado, que expõe a ausência que ela mesma demonstra sentir. Como a pesquisadora Roberta Veiga comenta sobre a cineasta, “Naomi faz da obra um lugar para se colocar em obra”. Portanto, ao segurar sua câmera com as mãos e filmar o que lhe interessa, Naomi parece descobrir não um cinema que lhe devolve a narrativa equivocada de um tempo irrecuperável, mas imagens que espelham seu sujeito fragmentado e oferecem um contorno aos vazios de sua história.

A princípio, e antes de nos precipitarmos a uma interpretação de suas imagens, Naomi parece filmar pelo ato mesmo de filmar, como se descobrisse através da objetiva da câmera e da montagem do cinema uma forma outra de enxergar e conceber a sua própria realidade. Ao filmar objetos de sua casa, capturar mais ou menos luz através do diafragma da filmadora, acelerar o vídeo e sobrepor imagens na montagem, colocar óculos de grau e fotografias diante da lente, Naomi parece estar reaprendendo a ver com os olhos da câmera — como se se deslumbrasse com eles e fossem eles os seus. E, montando tais imagens em filmes, é como se ela visse nessa criação um outro olhar, suscetível a mudanças e capaz de abrigar “a infinitude de um habitat físico e emocional” (MIRANDA, 2008). Naomi, por fim, “reverte sua dor em atividade de empatia com a realidade” (idem), acolhendo-a de seu modo.

No entanto, apesar de notarmos o prazer de se perceber esse outro olhar através desse pairar sobre objetos comuns em imagens autônomas, os filmes
privados de Naomi não lhe ausentam de seus vazios, mas, como dissemos, oferecem a esses um contorno plástico — próprio das imagens — e, portanto, torna-os, ao menos, palpáveis. Como Benjamin escreve em a Pequena história da fotografia, “uma imagem, uma escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade” (BENJAMIN, 1994). Dentre as inúmeras possibilidades nessa imagem suscitada por Benjamin, podemos pensar que, diante das enormes complexidades invisíveis e dos traumas que atormentam uma pessoa internamente, uma imagem que se faz de e para si é capaz de revelar, como em um espelho — opaco, translúcido ou espectral — , a própria existência quando esta é frágil. Em seu ensaio Dar à Luz. Naomi Kawase, Luis Miranda escreve: “Naomi não exerce o papel de narradora da própria vida, antes passeia e observa, como uma presença fantasmagórica, fraca, que precisa verificar-se a si mesma” (MIRANDA, 2008). Com isso, apesar de breve e aparentemente supérflua, a epígrafe que abre este ensaio me parece fundamental para olharmos o cinema da Naomi como um processo intrínseco e constituinte que lhe devolve sua própria vida.

Diante disso, podemos evocar em poucas linhas o pensamento profundo que Marie-José Mondzain (2015) desenvolve no capítulo As imagens que nos fazem nascer, do livro Homo Spectator. Esse diz respeito ao momento em que o homem paleolítico adentra no desconhecido espaço de uma caverna, deixando para trás o ambiente exterior — no qual coabitam inúmeros outros animais maiores e mais perigosos — para, então, iluminar a escuridão com o fogo que ele mesmo acendeu. À sua frente, uma dura rocha que permite o toque do homem através da distância de seu braço, diferentemente do horizonte infinito do ambiente externo, o qual ele não pode tocar. Dessa forma, valendo-se de seu corpo, boca e mão se ressignificam. A boca expulsa, como Mondzain diz, mais do que a tinta com a força do seu sopro, mas a matéria dos signos. E o braço, juntamente com a mão, produzem essa distância do homem com a pedra do mundo, apoiando-se nele e criando, assim, as imagens originárias do homem. Imagens essas que são vistas somente quando este se distancia, retrai-se e pode, enfim, por um elo de criação e alteridade, criar um novo espaço-tempo. Com isso, fazendo um cruzamento desse pensamento com o cinema de Naomi, é possível aproximá-los, mesmo com a distância dos tempos, e lançar-lhe um olhar que alcance mais do que a imagem como um objeto, mas como um gesto. Se, ao invés do fogo e da mão, visualizarmos uma câmera, deparamo-nos com a própria Naomi. Desse modo, é como se Naomi, ao filmar e criar imagens,
conseguisse estabelecer um distanciamento de si mesma, assim como o homem paleolítico, e instaurasse a possibilidade de ver.

No entanto, em um movimento aparentemente contrário, Naomi provoca um outro gesto. Se continuarmos do ponto em que Mondzain, em sua phantasia, interrompe o ato do homem paleolítico quando este retrai o braço da imagem concebida, podemos dizer que Naomi, após o distanciamento, parece erguer sua mão novamente em direção às imagens. Em Caracol, outro filme-memória, Naomi se detém diante de uma janela que dá para o jardim onde sua avó está. Através do vidro, ela passa as mãos pela forma da avó, como se o cristal fosse a película de uma imagem, na qual Naomi enxerga seu ente querido. Logo em seguida, tomada por esse deslumbre de poder ver, Naomi avança para o jardim e passa a tocar a pele da avó. Não à toa, em muitas cenas, Naomi posiciona a mão diante da câmera, tocando não só a avó, mas a luz do sol que toca o seu filho, como em Nascimento e maternidade, e, até mesmo, o próprio céu, em Em seus braços. Além disso, no que diz respeito às fotografias de seus pais, tão frequentemente retomadas, Naomi transpassa as bordas dessas imagens e aproxima a câmera do rosto e dos gestos de seus pais nessas fotografias, como se entrasse nelas e tentasse suprir a distância entre eles, mesmo que nesses fragmentos minúsculos de tempo. Desse modo, além do olhar, os filmes de Naomi lhe possibilitam, portanto, o toque, o contato. Como Miranda (2008) pontua em seu ensaio, “o eu que aqui se move, busca, olha, encontra e define-se somente por sua vontade de contato, não por sua ‘história’. Existe, isso sim, uma vontade de autorretrato, porém não por meio da exibição do eu, mas da paisagem que habita ou o afeta a cada instante; por meio daquilo que este eu insiste em olhar”.

Portanto, diante dessa curta proposta de olhar o cinema de Naomi, encontramos uma obra que imbrica, em conjunto, corpo, câmera e imagem em um cinema em processo íntimo — um cinema espelho.

“Por que as árvores balançam ao vento? Elas podem sentir umas às outras. Se eu fosse um pouco mais natural, me sentiria muito melhor” — Naomi Kawase, em Em seus braços

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