O Cinema de Ozu:

Uma composição da singularidade cotidiana

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
8 min readMay 18, 2017

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“Era uma vez em Tóquio”, 1953

Ao decupar o cotidiano, longe de parecer tedioso e pouco criativo, o diretor Ozu pincelava toques de realismo com uma simples naturalidade em cada sequência de seus longas, para assim manter uma unicidade no coletivo e lapidar a beleza própria em cada produção sua.

Pai e Filha (Banshun, 1949) se inicia em uma estação de trem. Símbolo recorrente nos filmes de Ozu, o trem parece representar a transitoriedade que tanto inspira o diretor. Relacionado ao adeus, à nostalgia e às viagens, seus trilhos carregam o emocional do japonês em movimentos de melancolia. O simbolismo em torno do trem pode ser encarado como uma metáfora da narrativa do filme.

Chishu Ryu e Setsuko Hara em “Pai e Filha”, 1949

Nele, pai (Chishu Ryu) e filha (Setsuko Hara, interpretando Noriko) aparentam viver felizes entre si. Ele, viúvo, e ela, solteira, contracenam naturalmente na tela, configurando uma relação onde um certo tipo de ingenuidade se funde com o respeito e a admiração que ambos nutrem um pelo outro.

Diferentemente do tempo do cinema clássico, onde cada cena determina seu propósito numa relação de causa e consequência com a narrativa do filme, Pai e Filha é, simplesmente, calmo. Nele, os planos constroem relações de paralelismo entre si. Deslizam uns pelos outros, sem criar hierarquias entre cenas e sequências distintas.

Por causa dessa disposição, é difícil para um desavisado compreender facilmente sobre o que se trata o filme. As primeiras cenas, que ocupam boa parte dos minutos iniciais, são compostas por momentos do cotidiano. Reuniões despretensiosas e conversas despreocupadas, que ocorrem no momento do ali e agora como que sem justificativa no roteiro.

Contudo, pouco a pouco, esse nosso hipotético desavisado irá perceber que o que está assistindo é a própria história, em todas as suas singularidades. E provavelmente não vai discernir que a apresentação do mote da narrativa se dá no momento em que a tia de Noriko fala com o pai sobre o casamento da filha. Misturada entre as sequências do cotidiano, essa breve cena cravada aos 25 minutos de Pai e Filha reverberará em todas as relações que os personagens constituirão a partir daí.

Do mesmo modo como chegou, logo essa cena nos escapa. Seja entre os pillow shots (termo cunhado por Nöel Burch para designar os planos que suspendem o fluxo da narrativa sem necessariamente contribuir para o seu desenvolvimento) ou no reforço dessas situações de cotidiano, uma fluidez da narrativa principal se perde. Contudo, longe de exemplificar uma dificuldade de encadeamento, o estilo de Ozu reflete um realismo que se completa, num tempo material, na película de seus filmes.

“Pai e Filha”, 1949

Ao acompanhar a rotina de mulheres e homens japoneses, o diretor traduz o ritmo daquela vida considerada tradicional ao tempo do próprio filme.

Em Era uma vez em Tóquio (Tokyo Monogatari, Japão, 1953), essa visão de cotidiano aparece mais demarcada. Segundo o crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, o filme é uma “reflexão sobre a delicadeza perdida”. Essa breve conceituação, firme em seu propósito, traduz o modo como a viagem feita por um casal de idosos para visitar os filhos é retratada em cena. De Onomichi à Tóquio, os trilhos do trem conduzem a um reencontro de família marcado pelo contraste entre a idealização e a realidade. Apresenta uma Tóquio em processo de ocidentalização, em contraste com o que esperamos da capital. Uma família com laços quebrados pela rotina, em contraste com uma suposta e idealizada acolhida dos filhos. E uma nora, Noriko, mais uma vez na pele de Setsuko Hara, que parece ser o porto seguro dos patriarcas da família.

Chishu Ryu e Chieko Higashiyama em “Era uma vez em Tóquio” (1953)

Mais do que o tema, a delicadeza do filme está em seu modus operandi. Na forma estética, o enquadramento da câmera baixa de Ozu transporta a simplicidade da narrativa para perto do espectador. Isso é reforçado quando o diretor nos coloca no meio de um diálogo: o plano contra plano frontal reforça não só a expressão do ator durante uma conversa, como chama para, na quebra dessa quarta parede, a participação do espectador no filme. Aliás, a narrativa do cotidiano construída por Ozu expressa uma familiaridade que aproxima nossas próprias histórias, nossa rotina e nossas relações interpessoais ao cinema do diretor.

Uma cena exemplifica isso. Após pedir folga no trabalho, é Noriko quem consegue passar um tempo com Shukichi (Chishu Ryu) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama), o casal de idosos em visita à Tóquio. Conjugando o cenário do escritório onde Noriko trabalha e de sua casa com as primeiras cenas de Tóquio como uma “grande cidade” — metrópole de ônibus, prédios e grandes letreiros; mas também de tradição e história –, Ozu cria o contraste entre a narrativa que nos está sendo apresentada e à expansão da locação que a enquadra. Isso é ainda mais evidente quando Noriko, em algum ponto alto da cidade, aponta as casas de Koichi (So Yamamura), o filho mais velho da família; Shige (Haruko Sugimura), a filha mais velha; e a dela própria: cada uma em um ponto diferente da capital.

Chishu Ryu, Setsuko Hara e Chieko Higashiyama em “Era uma vez em Tóquio” (1953)

É nessa miudeza de sentido que em sequência somos levados à casa da nora e à fotografia de Shoji, segundo filho do casal, esposo de Noriko, provavelmente morto na Segunda Guerra Mundial. Sorrindo, Shukichi e Tomi perguntam “onde ele tirou essa foto”, “quando foi isso”, numa tentativa de reencontrar o filho perdido por meio da película de sua representação. Contudo, paralelamente Noriko busca sachê e copos na casa da vizinha. Quando Noriko retorna à sua casa, depois de pegar os copos na vizinha, os pais já estão sentados ao chão, agradecendo à nora pela companhia durante o dia. Logo, a menção mais sólida à guerra no filme dura pouco mais que alguns segundos.

Nessa breve cena, mais uma vez, encravada no cotidiano que é costumeiramente narrado por Ozu, vemos a guerra como uma lembrança na parede. Suas marcas não se revelam em momentos dramáticos ou filosóficos diálogos. Pelo contrário: pela constância da guerra no dia-a-dia das personagens, conseguimos desvelar na ausência de Shoji a brutalidade do conflito, e como ele conseguiu atingir às diversas camadas e relações na sociedade japonesa.

“Na busca do cotidiano e do comum, apesar de e com todos os problemas, conflitos, confrontos que nos invadem, nos pesam, nos modificam, nos desafiam é que Ozu apareceu como um ponto de partida. Um outro cotidiano, um outro comum não só dilacerado por violências, mas também e sobretudo pela possibilidades de encontro, ao mesmo tempo, concreto, material, corpóreo […].” (Denilson Lopes Silva, em “A estética do neutro em Ozu e a sua atualidade”)

Nessa narrativa formada por agregação também é construído Também fomos felizes (Bakushu, Japão, 1950). Repetindo o tema do casamento como o estopim de uma dissolução familiar, mas aqui concedendo mais autonomia à protagonista feminina, que decide com quem se casar; encontramos espaço para uma gradação de momentos no longa que vão do principal mote narrativo ao singular das representações cotidianas.

Família Mamiya, em “Também fomos felizes”, 1950

A família Mamiya, maior do que a representada em Pai e Filha, apresenta a mesma preocupação com o destino de Noriko (Setsuko Hara, pela terceira vez), que, já com 28 anos, permanece solteira. Assim, o filme, paralelamente elencando pretendentes para o casamento de Noriko, apresenta diferentes relações tanto entre a família quanto entre amigas e amigos. Destaque para a presença das crianças que, como em Era uma vez em Tóquio, também são insolentes e teimosas com os mais velhos; e para o modo como as irmãs dividem um bolo caro com uma visita. Essas situações, quando revisitadas, deixam ainda mais claro a presença do cotidiano na narrativa de Ozu e a sua função no roteiro. Assim como a crônica na literatura, essas breves passagens dizem respeito a temas mais universais nas relações sociais (a educação familiar japonesa, no caso das crianças; e uma suspeita sobre as dificuldades financeiras que Noriko enfrentaria, em razão do bolo). É uma estratégia que, de forma semelhante, Antonio Candido retoma ao conceituar a crônica literária:

“Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela [a crônica] se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.” (Antonio Candido, em “A vida ao rés do chão”)

A seu modo, e em seu dispositivo técnico, as crônicas escritas à luz por Yasujiro Ozu emanam uma certa banalidade capaz de reformular a dimensão do profundo em seus filmes. Brincando com as definições do singular, da generalidade e do universal, o diretor constitui verdadeiros épicos do dia-a-dia nos filmes que dirige, trazendo a realidade japonesa com um naturalismo simples e comovente.

Já não somos mais desavisados perante a obra de Yasujiro Ozu. Portanto, já não podemos cair na armadilha de afirmar que seus filmes pecam por não introduzir sua narrativa de modo claro e redundante. Isso é função do cinema clássico, como diriam alguns autores.

Ozu, por outro lado, reinventa-se nessa relação que estabelecemos entre o diretor e a literatura, produzindo exemplares de crônicas cinematográficas em seus filmes. Essas crônicas, responsáveis por enquadrar a beleza e a singularidade do cotidiano e das relações do dia-a-dia no tema da dissolução familiar constante às produções de Ozu, unem e distinguem seus filmes. Tanto produzem uma unicidade no coletivo, reunindo variados filmes numa taxonomia de estilo, modos e conteúdo; quanto os diferem, já que o cotidiano, mesmo na rotina, nunca se repete. Assistir Ozu é, portanto, conhecer esse espelho de mundo onde a realidade do singular não é só possível, como também palpável.

Ozu

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Gabriel Araújo
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Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.