O jogo dos quereres em Trama Fantasma

Sobre navegar pessoas como quem navega um mar revolto

Laura Batitucci
Fale de Cinema
6 min readFeb 25, 2018

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Há detalhes do filme a seguir, cuidado com possíveis spoilers

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Caetano Veloso — O Quereres

Há um ditado que diz que “quando um não quer, dois não brigam”. Não acho esse ditado muito acertado, visto que a violência em um relacionamento, muitas vezes, tem só uma fonte. Arrisco levar esse ditado a um outro extremo e dizer que “quando um não quer, dois não amam”. De um só lado, pode haver desejo, pode haver ternura e pode também haver paixão: mas não pode haver amor, porque amor é um jogo que se joga junto.

Não há como falar de Trama Fantasma (Phantom Thread), novo filme de Paul Thomas Anderson, sem refletir sobre o amor e suas facetas. Debaixo de uma roupagem (sem trocadilhos) de um filme “sofisticado” sobre a elite londrina de 1950, mais especificamente sobre um costureiro renomado dessa elite (Reynolds Woodcock, interpretado por Daniel Day-Lewis), o filme dialoga sobre temas diversos, que passam da natureza do amor às relações abusivas ao egocentrismo dos artistas ao poder dos oprimidos sem muitos esforços, e com primazia técnica, como sempre.

Woodcock, com sua casa de costura que parece girar graciosamente ao redor dele — como ressaltado nos primeiros planos do filme, com belíssimos e suaves movimentos de câmera que demonstram essa dinâmica da Casa Woodcock— e sua rotina metódica, que o permite não pensar em nada que não sua arte, é apresentado a nós por Alma (Vicky Krieps, uma atriz luxemburguesa que merece muito mais reconhecimento do que teve até o momento). Alma é, primeiro, uma narradora anônima; depois, alvo da câmera de PTA assim como é alvo do olhar de Woodcock — que a perscruta calculando suas medidas, analisando sua perfeição — ; por último, enquanto ganha força diante do parceiro, ganha força diante da narrativa e toma o protagonismo do filme. É esse movimento de Alma, primeiro ao redor, e depois à frente, que define Trama Fantasma como filme e é magistralmente orquestrado por Paul Thomas Anderson para soar natural e suave, apesar de desesperador e intenso. É o movimento de quem não pode se movimentar, é o navegar silencioso de uma mulher por entre opressões diárias elevadas a uma potência máxima.

A força gravitacional que tudo suga, inclusive Alma, é claramente Woodcock, e não há como negar que sua presença é avassaladora. Day-Lewis o confere uma segurança absurda, o tipo de segurança que só existe naqueles que têm certeza de que o mundo gira ao seu redor (homens artistas são muito hábeis em ocupar essa posição social, já que o ego inflado do gênero combina com o ego inflado da profissão). Tudo que sai minimamente dos seus planos cuidadosamente assegurados por Cyril (sua irmã, interpretada por Lesley Manville e detentora de um apelido sensacional, “Ms. So-and-so”) o irrita: e é por isso que um dos maiores pontos de virada do filme é a insistência de Alma em realizar-lhe uma surpresa. Como espectadores, já sabemos o suficiente sobre Woodcock para ter a certeza de que ele não receberá bem a surpresa , e tememos pela frustração que será provocada — mas não sabemos o suficiente de Alma para esperarmos a forma como ela reage diante dessa reação negativa de seu companheiro.

Vicky Krieps é Alma — e deveria ter sido indicada ao Oscar por essa atuação sutil, mas intensa

Entendemos progressivamente, junto a Woodcock, que Alma não será mais uma de suas namoradas passageiras, e que ela possui um intenso desejo de que aquela vida que está levando na Casa Woodcock permaneça. De garçonete, ela se torna modelo e parte da aristocracia britânica: Reynolds não significa apenas um relacionamento para ela, significa uma ascensão social e uma melhoria tremenda de qualidade de vida (o que, na época, era raro que uma mulher conseguisse sem a ajuda de um homem, infelizmente). Dessa forma, querendo tanto o homem quanto manter a nova vida que leva, ela vai lutar de todas as maneiras possíveis para ser fundamental na vida de Reynolds — aprendendo a costurar, lidando com a sua irmã, percebendo de que forma e a que momento ele pede seu apoio (como na sequência em que ele se irrita profundamente ao ver um de seus vestidos sendo usado por uma mulher que aquela sociedade considera “vulgar”, e Alma o ajuda a recuperar sua obra). Ao mesmo tempo, ela não se submete: quer fazer valer suas vontades e ter um homem que as satisfaça, portanto, também se impõe nos momentos em que sabe que pode — raros no começo, mais frequentes ao final. A partir da primeira discussão séria entre os dois, após a mencionada cena da “surpresa”, percebemos uma crescente imposição de Alma sobre a casa, sobre a vida de Reynolds, e até mesmo sobre o tempo de tela do filme.

Mas ela o faz de maneira sutil, e isso é sempre ressaltado pelo impressionante cuidado do roteiro com a construção dos elementos da personalidade do casal. Woodcock ora quer uma mãe, ora quer uma musa — e Alma passa seu tempo aprendendo sobre como se transformar em uma ou outra de acordo com as vontades do companheiro. Reynolds anseia pela mãe em seus momentos vulneráveis, nos momentos em que sua energia criativa chega ao ponto mais baixo possível — mas, com um truque na manga, ela aprende também a controlar esses momentos para que possa ter um homem carente quando ela quiser. Numa das sequências mais significativas do longa, enquanto está sofrendo da primeira intoxicação por cogumelos, ele parece alucinar vendo a mãe no seu quarto. Ela está apenas parada, escutando-o falar com ela, usando o vestido de casamento costurado por um Woodcock adolescente (já a havíamos visto dessa maneira em uma foto mostrada pelo filho). Quando Alma entra no quarto para cuidar dele, vemos que só ele está vendo a mãe, mas, após os cuidados da sua companheira, a imagem da mãe desaparece inclusive para ele e descobrimos que ele não estava suficientemente febril para estar alucinando. A presença da mãe em sua vida, que o velava quando doente, ainda não havia sido suprida de forma completa com nenhuma outra mulher, como Cyril ou suas várias namoradas, nem mesmo por todas ao mesmo tempo — mas Alma começa a suprir essa presença, fazendo com que a mãe desapareça de sua memória, pelo menos por um momento.

É lindo observar Alma aprendendo, mudando, navegando — e não é que todas nós, mulheres, deveríamos nos inspirar nesse movimento restrito para nos livrarmos de nossas opressões. Muito menos seria correto aspirarmos aos aspectos doentios que permeiam a relação calcada na desigualdade que é estabelecida entre Alma e Reynolds. Mas assistir a esse movimento da personagem é, em parte, perceber que tudo é possível, é perceber força de onde só esperávamos fraqueza, é perceber que, da descartabilidade completa, mesmo que tomando ações questionáveis que são fruto da mais absoluta falta de opção (como o envenenamento periódico ao qual ela recorre), surge a mais completa dominação.

Em parte, também, é possível enxergar beleza e sofisticação na forma como os dois, ao final, se amam. PTA nos mostra que é possível que, diante de alguém que parece suprir nossas necessidades mais profundas e nossos desejos mais íntimos, vejamos o feio como belo, aceitemos veneno, sejamos submissos. Mesmo que todo o mal se repita após a recuperação, iremos querer todo o mal novamente: não podemos aceitar uma pessoa sem aceitar todas as suas características, não podemos escolher apenas conviver com as qualidades, e, para manter alguém do nosso lado, somos capazes de tudo. Somos seres complexos com desejos estranhos e conflitantes, e, se quisermos estar na companhia de seres que também são complexos e com desejos estranhos e conflitantes, em pé de igualdade, temos que entrar num jogo, numa dança — que, por mais intensa e corrosiva que às vezes seja, sempre será graciosa.

Ah, bruta flor do querer.

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