O ritmo em Em Ritmo de Fuga

Reflexões sobre música, som e montagem em Baby Driver

Laura Batitucci
Fale de Cinema
8 min readJul 27, 2017

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Não há grandes spoilers da trama neste texto, mas a premissa e alguns elementos recorrentes no filme são detalhados aqui.

Outro dia, fiquei parcialmente surda. Meu ouvido esquerdo estava entupido com cera (sem julgamentos, por favor), o que criou um efeito “tampão” que me deixou quase maluca durante toda uma manhã. Fato é que perder a audição, mesmo que parcialmente, não é algo que simplesmente afeta sua vida de forma física. De repente, toda a sua percepção de mundo fica alterada e isso muda profundamente (no meu caso, apenas ligeiramente) a maneira como você se relaciona com o ambiente — com aquilo que está para fora do que há entre suas orelhas. Essa digressão é relevante porque o som que ouvimos (e que deixamos de ouvir) é ponto importante na trama nesse novo Em Ritmo de Fuga, e podemos analisar vários aspectos do uso da linguagem cinematográfica a partir disso.

Baby (Ansel Engort), o protagonista, não tem um ouvido tampado com cera, como eu tive, mas um tinido — barulho agudo e constante que afeta a sua audição apenas no ouvido esquerdo — adquirido devido a um acidente que matou seus pais na infância. Baby é um motorista de fuga (excelente, por sinal) para um assaltante profissional, Doc (Kevin Spacey), que monta trupes diferentes a cada grande assalto e nunca participa deles pessoalmente. Baby não quer passar a vida fazendo isso — ele está pagando uma dívida a Doc e está prestes a realizar seu último trabalho, para finalmente viver uma vida simples, que combine com seu tipo gentil. Como adicional à sua personalidade, Baby ama música, não tira seus fones do ouvido — alegadamente para tampar o desconforto causado pelo tinido — e tem vários iPods. Baby é vivido de forma contida pelo jovem Ansel Engort, que constrói um personagem focado e reservado, mas que nem por isso deixa de representar bem as emoções — observe, por exemplo, o ligeiro tremor na parte superior da sua bochecha direita quando o protagonista está com raiva de alguém (como ele faz isso??).

A premissa do filme não é nenhuma grande novidade no cinema — a citar um exemplo recente e similar, temos Drive, dirigido por Nicholas Winding Refn — porém, o que interessa aqui é o que o diretor Edgar Wright (e os principais artistas envolvidos nos quesitos que citarei aqui: os montadores Jonathan Amos e Paul Machliss, colaboradores frequentes de Wright, o compositor da trilha Steven Price, responsável também pela trilha de Esquadrão Suicida e Gravidade, e o departamento de edição e mixagem de som — muita gente, não quero deixar ninguém de fora) faz com ela, por meio de um uso intrincado e um domínio absoluto da linguagem.

Ansel Engort como Baby em Baby Driver

Comecemos do mais evidente: a trilha sonora do filme. Trilhas sonoras, normalmente, se dividem entre trilha original (score), composta para o filme e inédita, e trilha não-original (soundtrack), constituída normalmente por músicas pop que foram selecionadas para estarem no filme (você pode encontrar a trilha sonora não-original de Em Ritmo de Fuga aqui). Trilhas são algo tão antigo quanto a presença do som no Cinema (aliás, minto — mais antigo: trilhas eram compostas inclusive para filmes mudos e as partituras eram enviadas para pianistas tocarem durante as exibições), assim, elas são parte importantíssima do processo cinematográfico e não devem ser alvo de tentativas de simplificação ou cortes de gasto: vide a situação envolvendo plágio das temp tracks, principalmente em grandes estúdios, como a Marvel (mais sobre isso aqui e aqui). Normalmente, escolhas sonoras preguiçosas, como as apresentadas nos vídeos acima, derivam de diretores preguiçosos (ou que não têm muito conhecimento de música e acabam exercendo autoridade demais nesse setor, restringindo o potencial dos compositores), ou, na pior das hipóteses, de compositores preguiçosos.

No caso deste longa, o diretor pessoalmente escolheu as músicas da trilha não-original antes mesmo de gravar o filme (mais sobre isso nesta entrevista). Wright sempre utilizou bastante a trilha não-original em seus filmes (há várias opções para os cineastas nesses sentido. Há a opção de não usar nada que não seja original — por exemplo, em Star Wars — , ou, como na maioria das vezes, de usar apenas uma ou outra música que seja de fora da composição original — como em A Rede Social, por exemplo, com o uso do clássico dos Beatles Baby, You’re a Rich Man — e a opção de investir pesado nesse aspecto, como em Guardiões da Galáxia e Esquadrão Suicida). Eu evitaria fazer um juízo de valor tomando como base apenas a escolha pessoal do diretor quanto à porcentagem de música alheia que é usada em seu filme (há um argumento sensacional aqui sobre os dois últimos filmes citados e a vasta utilização de trilhas não-originais, que diz o seguinte: e se o espectador relaciona tal música a um evento da vida dele que nada tem a ver com a situação retratada no filme? Isso não causaria um distanciamento emocional?), mas, quando há um excesso de música não-original, isso deve acontecer por uma razão diegética, ou seja, incorporada pela narrativa, ou temática: em Guardiões, por exemplo, o uso excessivo de músicas pop faz sentido no âmbito diegético, pela existência das mixtapes do protagonista, e também no âmbito temático, pela tentativa de aclimatar a história com elementos dos anos 80. Em Baby Driver, novamente, isso ocorre nos dois sentidos: tanto porque Baby é um fã de música e escuta seus iPods o tempo inteiro quanto porque o ritmo das músicas escolhidas pode ajudar a criar o clima de algumas cenas, como as de perseguição de carros.

Chegamos a mais uma questão importante aqui: como a música cria o clima de cada cena em Baby Driver? Como isso se relaciona aos sons diegéticos, ou seja, aqueles que se dão dentro do universo da narrativa? E como isso se relaciona à montagem? A sincronia entre "barulhos" e música (e, no sentido visual, entre cortes das cenas e música) precede em muito esse filme: é um recurso utilizado à exaustão em clipes musicais, principalmente. Talvez por isso o filme de Wright dê a sensação de ser um grande clipe musical — algo que desagradou alguns críticos, como Anthony Lane, mas, na minha opinião, é algo que ressalta as qualidades do roteiro e tem propósitos narrativos. Baby ama música e, como o filme nos dá a história do ponto de vista dele, o mundo é mediado pela música e envolto por ela. A forma como Wright mostra isso cinematograficamente é mergulhando todos os aspectos do mundo que circunda o protagonista em música: a batida do som acompanha os tiros, as explosões e todas as pirotecnias daquele ambiente conturbado pelo crime (isso é discutido de maneira interessantíssima por este vídeo). O que mais me impressionou, contudo, foi o nível de atenção a um detalhe muito importante que acompanha Baby em todos os momentos em que ele não está ouvindo música: o tinido. Há pouquíssimos momentos em que o personagem não está ouvindo música, mas, sempre quando ele não está, conseguimos perceber, mesmo que de forma extremamente sutil, a presença do tinido: um barulho agudo que está no fundo da faixa sonora do filme, cujo volume é aumentado substancialmente quando, no universo do filme, alguém provoca um ruído forte perto de Baby (por exemplo, ao fechar a porta de um carro). O cuidado da equipe de edição e mixagem de som com esse detalhe demonstra a capacidade desses profissionais de emularem um ponto de vista a partir do som, um componente da linguagem cinematográfica ao qual poucos espectadores devotam atenção. Por não ser algo óbvio, como um lindo desenho de som de uma explosão, e sim algo sutil, que ajuda na construção da nossa visão sobre um personagem, acredito que o som de Baby Driver nos ajuda a entender a importância da competência na manipulação de todos os aspectos técnicos em favor de uma narrativa.

Voltemos à última pergunta do parágrafo anterior: como a montagem, e agora estamos exclusivamente falando da parte visual, consegue ajudar na sintonia entre a música e o mundo de Em Ritmo de Fuga? Um filme sobre velocidade deve ter um ritmo que faça sentido — dessa forma, cortes rápidos, ou seja, aqueles que mantém o tempo dos planos em tela bem curtos, são necessários nos momentos de ação, mas devem ser usados de maneira inteligente. Como temos uma trilha sonora ao fundo como guia, seria fácil para os montadores simplesmente cortarem ao ritmo da música (se a música for em 4/4, um ritmo comum em boa parte das músicas pop, isso se daria caso os montadores posicionassem os cortes sempre no tempo 1, ou 2, por exemplo), mas, se os cortes fossem feitos dessa maneira, os tempos de cada plano em tela seriam exatamente os mesmos, o que seria, no mínimo, tedioso. O que foi feito, por outro lado, foi algo que ao mesmo tempo respeitou a divisão do compasso da música (nas cenas em que ela está presente, claro) — ou seja, não há nenhum corte feito no “meio” do tempo ou no contratempo (sugiro darem uma olhada nesse vídeo aqui sobre o básico da teoria de fórmulas de compasso, caso não estejam familiarizados com algumas notações feitas aqui) — e o tempo de tela que cada plano deve ter para que o espectador pudesse entender o que ocorria ali . No caso de planos com muitas informações visuais diferentes, por exemplo, ou que representam um movimento complexo de algum personagem pelo espaço, os montadores o deixam mais tempo em tela. Essas duas características, de respeitar tanto o tempo musical, que é expressado pela trilha, quanto o tempo psicológico, necessário para o espectador ter uma boa ideia do que está ocorrendo, faz com que Em Ritmo de Fuga se destaque entre outros filmes de ação, que comumente não têm essa sinergia tão bem orquestrada entre música, som e montagem, além de, várias vezes, serem confusos para o espectador. Nesses filmes, falta um elemento crucial: o ritmo. Aquilo que te faz dançar junto com a música em clipes musicais está presente em Baby Driver como um guia, fazendo com que nós sejamos capazes de entender as cenas de ação, mas, mais do que isso, também sejamos capazes de praticamente interagir com elas, esperando o que virá na tela na próxima nota que escutaremos.

Eu, como uma fã inveterada de música, baterista, e aspirante a montadora, fui extremamente afetada pela forma inteligente como esta obra foi filmada, montada e musicada (?), e sorri várias vezes como uma criança pelo fato de Wright respeitar tanto o ritmo em tantos sentidos, no set, na montagem, na edição de som. Não, Edgar Wright, você não foi lento: você foi perfeitamente e precisamente on tempo.

Desde já peço desculpas pelo excesso de parênteses e links externos, mas: 1 — é tanto conteúdo bom produzido sobre isso, e o Medium não aceita notas de rodapé; 2 — era necessário exemplificar a música, por isso tantos links para o Spotify. Juro que não foi patrocínio, mas se o Spotify quiser… me patrocina, Spotify!

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