O Sorriso de Cabíria

ou sobre a sequência em que Federico Fellini enquadrou a Esperança

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
6 min readJun 23, 2019

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O ano era 1957. O que restava de Benito Mussolini provavelmente estava sendo enterrado na comuna italiana de Predappio, após as tantas valas e túmulos pelos quais seu corpo esteve. A Itália se recuperava das experiências traumáticas do fascismo e da Grande Guerra, acumulando destroços e ruínas como quem sofre para se reerguer. O mundo segurava o fôlego para a revolucionária década de 1960, enquanto novos conflitos se avizinhavam no horizonte. A diminuta Cabíria sorria um sorriso impregnado de esperança.

Todas as contradições sociais que se impunham àquele país naquela época cabiam nesse sorriso enviesado. Ele simbolizava a opressão constante revelada pela negra lágrima circense que já inspirou os versos de Caetano Veloso — “aquela cara é o coração de Jesus”, disse o cantor –; mas também revelava a confiança pela vida e pelo futuro naquele puxar de lábios com os dentes à mostra — sorriso sincero e solene.

Este, que é um dos mais belos presentes do cinema, fecha com grandiosidade o filme Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, Itália, 1957), dirigido por um dos maiores nomes do cinema italiano, Federico Fellini. No filme, o diretor produz crônicas e episódios de diversos aspectos do cotidiano numa Itália despedaçada através dos olhos de uma prostituta que habita os arredores de Roma.

É Giulietta Masina, que foi esposa do diretor por mais de cinco décadas, quem entrega uma Cabíria profunda e multifacetada, personagem calejada que, após tantos altos e baixos, apenas deseja mudar de vida com alguém a seu lado.

Devemos muito à cumplicidade entre diretor e atriz pela construção de Cabíria. Mas falar sobre esse filme é também mencionar a contribuição de Nino Rota em mais uma parceria na trilha sonora do longa; a produção de Dino de Laurentiis, que lutou para driblar a censura implícita que deixava personagens como Cabíria fora das representações cinematográficas; e a força de um roteiro guiado por ninguém menos que Pier Paolo Pasolini, outro gênio do neorrealismo italiano.

Pois, por meio de Cabíria, é desvelada uma Itália de sonhos e abismos. Fellini parte do movimento neorrealista italiano para enfocar essas grandes questões sociais com respeito e atenção, mas consegue ir além. A autoralidade do diretor, algo que pode ser verificada em diversos longas de sua cinematografia, está em criar situações complexas na oposição e complementaridade de universos tão distintos, com a extravagância de alguns cenários e personagens frente à miséria que ronda outros. Na cena em que Cabíria encontra o ator Alberto Lazzari, por exemplo, interpetado por Amedeo Nazzari, vê-se com clareza, de um lado, o deslumbre proporcionado por uma mansão opulenta e, de outro, a simplicidade da protagonista, apequenada em espaços tão maiores que elas. Mais interessante é ver como esse ambiente a encanta, mas não a engana. Pois Cabíria ainda consegue ser aquela personagem que se emociona ao ouvir a quinta sinfonia de Beethoven na companhia de Lazzari, sem perder a gratidão e a humildade para com os empregados do ator. É também aquela que consegue dançar no ritmo dos gritos de outra prostituta que a insulta no lado oposto da rua. É aquela que se assusta ante a chegada de um homem no escuro, para depois descobrir nele um bom samaritano que facilita a vida dos muitos desabrigados de uma Itália miserável.

Há algo de chapliniano nessa mulher. Tal como Chaplin, Cabíria consegue alcançar a profundidade das reflexões e situações a partir de caricaturas bem trabalhadas. Por isso o filme caminha com muita facilidade entre a comédia e o drama, trabalhando diversos aspectos dos dois gêneros na naturalidade de sua narrativa episódica. Seja na eloquência da língua do povo italiano, que grita, se exalta e cria graça para fazer-se ouvir; seja na expressividade dos momentos contidos do longa, que consegue transmitir sua ideia de justiça social na potência do silêncio e dos pequenos gestos de personagens comuns.

Mais do que tudo o que já foi mencionado, Cabíria é aquela que tem fé no amor, quando todas as situações vividas pela protagonista apontam o contrário. Afinal, a conhecemos no desenrolar de um travelling apaixonante, que a revela correndo desimpedida em campo aberto, com o então amado atrás de si. Tão logo começou, tal fantasia é interrompida bruscamente: o parceiro a empurra no rio e rouba seu dinheiro. Mesmo assim, sua ficha demora a cair e ela se recusa a acreditar que tenha sido empurrada, satisfeita em crer num amor que nunca existiu.

É essa a perseverança que preenche o filme — por meio do sonho ou por meio da fé. Esgarçando ainda mais as contradições que enquadra, Fellini faz um grupo de prostitutas se calarem quando uma procissão católica de homenagem a Nossa Senhora passa pela rua. É também o diretor quem coloca essas mulheres e seus companheiros na busca pelo milagre da Virgem, num dia santo onde religiosidade e fanatismo se confundem, junto à horda que praticamente invade uma igreja procurando a bênção divina e a vida nova. “Ainda somos os mesmos”, lamenta Cabíria ao fim dessa sequência. “Ninguém mudou”.

Pois nada muda. Nem mesmo ao fim, quando gostaríamos de acreditar na honestidade do novo pretendente que pede a protagonista em casamento, obrigando-a a largar tudo para segui-lo em um desconhecido horizonte. O curioso é notar que tal pedido é enquadrado a partir de outro travelling, bastante semelhante com aquele que abriu o filme. Como Cabíria, queremos acreditar na sorte e queremos acreditar no amor, mesmo sabendo que a própria linguagem cinematográfica depõe contra o futuro projetado pela nossa ingenuidade.

Na “luz estranha” de um pôr do sol, todas as nossas expectativas são frustradas. Como desde o início já sabíamos o desenrolar desse desfecho, a direção de Fellini vai demarcar essa mudança de chave por meio do rosto de Cabíria, que aos poucos entende as reais intenções de Oscar D’onofrio, interpretado pelo francês François Périer. Os sonhos da prostituta se esvaem juntamente com a luz do dia, restando apenas a desilusão e o clamor pela morte. E o pretendente que por pouco nos convencera, foge num ato de covardia, levando as últimas economias da protagonista.

O fade que a eterniza deitada no chão, chorando, parece denunciar o fim do filme. Como Cabíria, o povo italiano estaria condenado ao fracasso e à miséria, de corpo e espírito. Mas ela levanta, ela caminha, inicialmente cabisbaixa, e ela encontra uma trupe que se diverte ao som de uma música tradicional. Aos poucos, talvez contra a sua própria vontade inicial, Cabíria sorri, quebrando a quarta parede e dirigindo ao espectador aquele olhar recheado de fé. Naquele sorriso cabem todas as contradições sociais de uma Itália em ruínas. Naquele sorriso cabem todos os sonhos dos oprimidos que anseiam e lutam por um futuro melhor. Um sinal de esperança, em sua mais genuína forma.

Texto produzido para a disciplina “Crítica Cinematográfica”, ministrada por Nísio Teixeira no curso de Comunicação Social da UFMG.

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Gabriel Araújo
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Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.