Os descaminhos de Baronesa

Fronteiras do real se embaçam em novo filme de Juliana Antunes

Laura Batitucci
Fale de Cinema
4 min readJul 9, 2018

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“A vida leva a gente a caminhos diferentes, mas nossos caminhos vão se reencontrar” – Andreia Pereira de Souza

É de caminhos diferentes e parecidos, encontrados e desencontrados, que fala Baronesa, filme de estreia da diretora Juliana Antunes sobre a vida de duas mulheres em Vila Mariquinha, favela próxima ao bairro Juliana, em Belo Horizonte. Andreia (Andreia Pereira de Souza) é manicure e quer se mudar para o Baronesa, construindo lá a sua casa; Leid (Leidiane Ferreira) é mãe de quatro filhos e seu marido está preso.

Juliana Antunes não seguiu o caminho da ficção pura (existiria tal caminho, afinal?) nem o do documentário ao pegar sua câmera, sua equipe e ir morar seis meses em Vila Mariquinha – e se esse é um método válido ou não, se representa ou não um “safári da pobreza”, se é ou não capaz de realmente dar voz às pessoas da comunidade, isso é um outro debate que definitivamente deve ser feito e estimulado principalmente por realizadores da periferia. Como resultado fílmico, porém, fica claro que Andreia e Leid carregam o filme e participam dele criativamente, dentro da proposta de roteiro de Juliana de criar as cenas sobre recortes da vida das mulheres-personagens.

Andreia é determinada, se diz feliz sozinha e está cansada da vida de eternas guerras (sem aspas) entre traficantes do bairro com os de bairros vizinhos. Em momentos diversos, Juliana captura seu olhar pensativo para um horizonte além-câmera, enquanto a nós só resta tentar completar as lacunas de seu pensamento com as informações que recebemos do filme. E são informações de diversas naturezas, que vamos montando como num mosaico: Andreia é sobrevivente de abuso do padrasto, Andreia acredita na masturbação como parte essencial da vida da mulher, Andreia só amou na adolescência.

Leidiane Ferreira em Baronesa

Conhecemos menos os caminhos de Leid, mas sabemos que eles são bem diferentes dos de Andreia: com quatro filhos e o marido preso, ela se esforça para criá-los, enquanto se diverte com Andreia e Negão (Felipe Rangel dos Santos) e repreende descobertas sexuais de seu filho mais velho com o irmão mais novo.

Os caminhos de Negão também se cruzam com os caminhos de Andreia e Leid. Com uma tornozeleira eletrônica, presumivelmente um traficante (apesar de isso não ser dito de forma clara no filme em nenhum momento), ele se protege como pode na favela de Vila Mariquinha – e alguma das melhores cenas do filme mostram a sua vulnerabilidade perante Andreia, seja testando um colete à prova de balas, seja se abrindo quanto a seu sofrimento emocional diante de uma imagem pornográfica projetada por um isqueiro.

Parte do que é interessante em Baronesa é justamente imaginar quais dos elementos das histórias (ou dos caminhos) apresentadas seriam mais ficcionais ou mais documentais. Passamos a curta hora do filme nos perguntando como aquele local, aquela vivência, afeta aqueles diálogos e aquelas relações que vemos na tela. Pensamos se aquela guerra comentada é real, mesmo sabendo que ela é, sim, bastante real em várias comunidades pelo país.

Até que o real invade de vez a tela ao final do filme, na cena em que Leid e Andreia conversam e, repentinamente, escutamos um tiroteio. A câmera, que estava parada em quase todo o filme, se movimenta de modo abrupto, sem muito rumo – e aí sabemos que a realidade não só afetou àquelas personagens e a nós, mas também a quem estava ali realizando o filme. O olhar que víamos como mero observador se transforma em um olhar participante. Nessa quebra, a nossa relação com o filme se transforma: os caminhos que percorríamos de forma tranquila, acreditando serem ficção, se materializam em realidade.

Naquele momento, inseridos no filme pelo ponto de vista incidental da câmera, entendemos perfeitamente porque Andreia não quer mais ficar ali. Assim como ela, vemos que correr aquele risco (que não só envolve perder a própria vida, como perder a vida de vários amigos, como Negão — que também, presumivelmente, morre como personagem) é perigoso e doído demais.

É também fundamentalmente de histórias femininas que fala Baronesa: histórias marcadas por uma localidade assolada pela violência, onde viver o dia a dia de forma natural é uma forma de resistência. Dentre os méritos da diretora (e das atrizes-personagens, claro), está mostrar esse dia a dia de forma objetiva, mostrar Leid e Andreia de maneira não-exótica. Nos identificamos com as dores daquelas personagens, mesmo que não tenhamos maridos presos ou amigos mortos pelo tráfico. É humana e sensível a forma com que aquelas mulheres aparecem diante de nós — e se não concordamos com alguma de suas ações, como pode acontecer na cena em que Andreia reprime de maneira veemente a possível sexualidade desviante do filho de Leid, é porque elas são pessoas diferentes, mas não distantes demais.

Dos caminhos e descaminhos da periferia belorizontina, Baronesa se ergue como um longa que, nas tendências do cinema brasileiro contemporâneo, desafia as convenções do que pode ser criteriosamente definido como documentário ou como ficção. Mais caminhos como os de Andreia e Leid são essenciais para povoar nosso cinema de histórias diferentes das convencionais, que merecem ser cada vez mais contadas e analisadas.

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