Os estereótipos femininos em Paixão Obsessiva

Estamos cansadas de nos vermos representadas sempre do mesmo jeito

Laura Batitucci
Fale de Cinema
6 min readApr 28, 2017

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Paixão Obsessiva, dirigido por Denise di Novi e escrito por Christina Hodson em conjunto com David Leslie Johnson, estreia essa semana nos grandes circuitos brasileiros e traz uma história comum de rivalidade feminina: a personagem de Rosario Dawson, Julia, é a namorada atual do personagem de Geoff Stults, David, com quem passou a morar recentemente e pensa em se casar. Porém, no caminho, há a personagem de Katherine Heigl, Tessa: a ex-mulher de David. Tessa não aceita o término e faz de tudo para se reaproximar deste, incluindo utilizar a filha do casal (Lily, interpretada por Isabella Rice) para obter alguma atenção do ex-marido. Dessa forma, o filme se desenrola tendo como centro a tensão crescente entre Julia, a protagonista, e Tessa, a vilã, que claramente deseja, de qualquer maneira, atrapalhar a relação de David e Julia.

Na premissa não há nada de novo, mas sempre é possível esperar uma reviravolta nos velhos clichês (afinal, já estamos em 2017) que envolvem as representações femininas no cinema — especialmente quando se tem a presença de mulheres tanto na direção como no roteiro, o que em si é algo ótimo. Porém, infelizmente, não há subversão alguma em Paixão Obsessiva. Neste texto, pretendo explicitar alguns dos problemas das imagens femininas que aparecem nesse filme, problemas que se originam no olhar masculino que está presente, limitando as possibilidades de relações entre mulheres.

A teoria do male gaze é clássica nos estudos de cinema feministas e foi proposta por Laura Mulvey em seu artigo de 1975 (!), intitulado Visual Pleasure and Narrative Cinema (algo como, Prazer Visual e o Cinema Narrativo, em livre tradução para o português). Segundo Mulvey, a objetificação feminina no cinema se daria devido a um male gaze (olhar masculino), ou seja, um ponto de vista sobre o filme que obrigatoriamente partiria de um homem heterossexual. Esse ponto de vista não estaria só presente no criador da obra, ou seja, no diretor, mas também partiria dos próprios personagens do filme e, por último, do espectador. O prazer do público masculino heterossexual seria o objetivo último (e, muitas vezes, único) de narrativas audiovisuais, que apresentariam a mulher apenas como um objeto para a obtenção desse prazer. Lembre-se de que, aqui, apesar de o prazer sexual do homem ser a principal forma de prazer em jogo, não é a única: o prazer emocional também pode estar envolvido, tanto quanto aspectos que valorizam a cultura da masculinidade em geral (filmes de ação, por exemplo, que procuram enaltecer músculos e carrões, são voltados majoritariamente para homens heterossexuais e pretendem inflar seus já gigantes egos).

Vistos os mais de 40 anos que nos separam da concepção dessa teoria, seria interessante dizer que já superamos o olhar masculino e que hoje produzimos um cinema diverso, que não assume automaticamente que seu público-alvo é um homem heterossexual e busca unicamente seu prazer, correto? Claro que não. Estamos em uma era em que finalmente começa-se a existir uma tentativa de inclusão e representatividade de minorias no cinema e nos estudos sobre cinema, porém, como sociedade, somos completamente incipientes no que diz respeito a essa questão. Exemplos disso são os números baixíssimos, que chegam a apresentar queda, na porcentagem feminina em cargos de direção e roteiro nos filmes brasileiros, segundo dados apresentados por um levantamento da Ancine. Sabe-se que as mulheres são grande parte da plateia dos filmes, então estaríamos nos submetendo, como em uma tortura lenta, a filmes que não são voltados para nós? Sim: e grande parte disso ocorre porque fomos ensinadas a aceitar essas histórias que não nos contemplam e até mesmo a gostar delas.

Com isso em mente, podemos entender que a narrativa da rivalidade feminina se encaixa perfeitamente dentro desse modelo guiado pelo olhar masculino. A ideia de que mulheres devem competir pela atenção de um homem — que, assim, pode ser capaz de “escolher” entre várias opções — é inata ao sistema social patriarcal e machista. Em Paixão Obsessiva, a própria premissa traz essa noção: a ex deve ser uma rival da atual, nunca uma amiga ou mesmo indiferente a esta. Mais além, Tessa representa perfeitamente o estereótipo da “Ex Maluca”:

This is someone The Hero used to be with, but broke it off. Said Ex is Not Good with Rejection. (É alguém com quem o Herói costumava ficar, mas terminou. Essa Ex Não Sabe Lidar com Rejeições.)
You can expect the Ex to become a Stalker with a Crush. Many times, the Ex will become a villain because Love Makes You Evil. (…) ( Você pode esperar a Ex se tornar uma Stalker com uma Crush. Várias vezes, a Ex vai se tornar uma vilã porque o Amor Faz Você Mau.)
Oh and God help anyone our hero dated after this loon. They will suffer. Sometimes the hero will be targeted as well. (Ah, e Deus ajude qualquer uma que nosso herói namorar depois dessa lunática. Elas vão sofrer. Às vezes o herói também vai ser um alvo.)

TV Tropes — Psycho Ex-Girlfriend

Retratar mulheres como malucas nunca foi um tabu da indústria cinematográfica, sendo essa estratégia usada incontáveis vezes para produzir vilãs cujos objetivos principais se limitavam a algo como “ter o homem que eu mereço de volta” ou “acabar com a vida de qualquer uma que venha a se aventurar com o meu homem”. Tal narrativa é utilizada também nesse filme, que representa Tessa como uma pessoa completamente desequilibrada, que centrou toda a sua vida em David e, com a ausência dele, se torna mesquinha, fútil, e progressivamente obsessiva. Interessante seria se o longa conseguisse discutir os fatores que transformaram Tessa nessa caricatura (opressão de uma cidade pequena e suas tradições familiares? Criação machista voltada para um único possível papel da mulher como cuidadora do lar?), porém, é claro que o filme, partindo de um olhar masculino, é incapaz de fazer isso, apenas utilizando-se desse estereótipo vazio para obter uma “vilã instantânea”, uma personagem mal desenvolvida.

Cabe pontuar aqui que, quando eu utilizo a expressão olhar masculino, eu não quero dizer necessariamente um protagonista masculino. Julia, a atual, é a protagonista desse filme: porém, ela também é submetida ao male gaze. Inicialmente mostrada como uma mulher forte, desempenhando uma função de chefia em seu trabalho, ela definha longe da cidade em que morava a partir do momento em que se muda para a casa de David — mas obviamente a história não representa essa decadência de Julia como um resultado nem mesmo indireto do machismo que a cerca, e sim como influência maligna de Tessa e como “período de adaptação” à sua “nova rotina” (que aqui quer dizer: se distanciar de seus amigos e trabalho para se tornar uma perfeita dona-de-casa e cuidadora de crianças). Nem mesmo sua história como mulher que sofreu abuso consegue adicionar uma dimensão à personagem, pois é utilizada apenas como mecanismo de manipulação por Tessa. O real sofrimento de uma vítima de um relacionamento abusivo nunca aparece em mais do que alguns flashbacks, que parecem estar ali só para ressaltar sua imensa vulnerabilidade.

Além dos gritantes estereótipos, vale dizer que as personagens são extremamente mal escritas e em nenhum momento parecem ter base em comportamentos de pessoas possivelmente reais. Repetidas vezes o filme nos irrita com a burrice da protagonista, que parece sempre escolher as ações com as piores consequências possíveis, ao mesmo tempo em que tenta nos fazer gostar dela e nos identificar com ela. As decisões de roteiro, quando não são previsíveis, são risíveis, tentando causar um efeito de surpresa no espectador que simplesmente não ocorre (vide a cena final).

O que Paixão Obsessiva nos ensina é que não basta termos um filme sobre mulheres, feito em grande parte por mulheres, para que tenhamos um real avanço na nossa libertação do olhar masculino. Precisamos ativamente saber reconhecer esse olhar e evitá-lo, pois nós também estamos imbuídas dele, apesar de não sermos responsáveis pela opressão que ele carrega. Acima de tudo, precisamos construir histórias que evitem estereótipos de mulher que servem apenas ao prazer masculino, histórias que tragam, por exemplo, o female gaze (olhar feminino) indicado por Jill Soloway, diretora e roteirista de Transparent, neste vídeo. Só assim poderemos dizer que iniciamos uma revolução na representação de mulheres no cinema e no audiovisual como um todo — e como eu estou ansiosa para que essa transformação se dê o mais rápido possível.

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