Por um “mas” nas representações de Gabriel Mascaro

Uma reflexão possível a partir dos primeiros documentários do cineasta pernambucano

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
6 min readDec 18, 2017

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“Eu estou fazendo um documentário”, diz um patrão para a empregada em “Doméstica”

A linguagem brasileira tem o costume de desprezar toda a sentença que, numa frase, precede a conjunção “mas”. A interpretação do tom de adversidade dessa palavra parece ignorar todo o processo argumentativo usado na criação do contraste na frase, valorizando e perpetuando apenas o segundo momento da construção narrativa. Logo, a frase “os primeiros documentários de Gabriel Mascaro são potentes, mas pecam em suas representações” adquire sentido totalmente diferente do período “os primeiros documentários de Gabriel Mascaro pecam em suas representações, mas são potentes”. Gostaria então de elucidar o motivo pelo qual os dois momentos da frase merecem igual consideração.

Cenas de “Um Lugar ao Sol” (à esquerda) e “Doméstica” (à direita)

Um Lugar ao Sol (2009) foi o segundo longa documentário de Mascaro, lançado quando o cineasta tinha 26 anos. Partindo de um catálogo que listava 125 nomes, endereços e contatos da socialite brasileira, o diretor pernambucano entrevistou 9 membros da elite que compartilhavam um domicílio em comum: coberturas das cidades de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. É certo que os ares superiores de uma cobertura influíram na mente dos entrevistados, que soltam discursos de poder e discriminação sem ao menos refletirem sobre a complexidade das coisas que cospem. Sim, no filme temos uma mulher que se refere a uma escultura que comprou em Minas Gerais como “minha escrava” e, sim, temos um homem que considera a classe econômica como a “senzala” de um avião. Mas temos um diretor que, por ter o poder da representação para confrontar essas pessoas, usa a linguagem cinematográfica para criar uma imagem caricata e reducionista da elite brasileira.

O cinema tem a sua própria justiça; Gabriel Mascaro sabe disso. Mas a justiça social que o diretor tentou fazer com as próprias mãos soa desrespeitosa. Primeiro, por estar falando do lugar da classe média, sobre a classe média, para a classe média, com certo ódio no discurso. A montagem, desenfreada, conjuga imagens como a esconder os cortes que são feitos nas entrevistas — uma estratégia que funciona perfeitamente na televisão, como a construir uma imagem de mundo universal. A trilha segue uma narrativa de suspense, terrorista, e se acentua num momento em que diversos offs de diferentes pessoas são colocados em conjunto, enquanto a câmera de Mascaro passeia pelo céu de uma cidade à noite — uma disposição que uniformiza os entrevistados e empobrece o que poderia ter sido uma exposição mais reflexiva e indireta.

Mas a montagem só existe porque os discursos que estão no filme realmente foram ditos. O casal que compara a trajetória das “balas tracejantes” no Morro Dona Marta a fogos de artificio realmente consideram que aquele espetáculo de violência serve à sua contemplação. Gabriel goza com isso. Tanto que é a mulher desse casal quem produz uma das poucas imagens não enquadradas pela equipe do cineasta. Quando ela percorre, com uma câmera subjetiva, os morros, relevos e vistas do Rio Janeiro, como a demonstrar o poder que a cobertura lhe confere sobre a cidade, Mascaro deixa. Não por valorizar o olhar em primeira pessoa da entrevistada, mas para fazer com que aquele olhar confirme o seu próprio ponto de vista.

Paradoxalmente, a única inserção de imagem contemplativa que o diretor usa sem pedir licença ao entrevistado é a mais forte de todo o longa. Refiro-me aos planos das sombras dos prédios que se impõem às praias de Recife: a metáfora do poder que literalmente se ergue acima do plano das pessoas comuns.

Cenas de “Um Lugar ao Sol” (à esquerda) e “Doméstica” (à direita)

Depois de um documentário tão marcadamente construído, Doméstica (2012) pode ter sido um desafio. Conceder a câmera a sete adolescentes para que eles filmem uma semana na rotina de suas empregadas domésticas — e do seu empregado também, já que um doméstico do filme é do sexo masculino — fez com que Mascaro se afastasse, supostamente, das condições de filmagem do documentário. Não da produção, pois a diversidade das relações existentes em tela denota uma prévia seleção de elenco; e muito menos de edição, já que o material bruto foi entregue para que o diretor concebesse uma narratividade ao seu longa.

Diferentemente de Um Lugar ao Sol, a narrativa de Doméstica preza por uma contemplação complexa daquilo que está sendo posto em cena. A câmera muda realidades, é certo — foi ela quem provavelmente fez com que a doméstica de uma família judia participasse do shabbat à mesa dos patrões –; mas o curioso afeto existente entre quem filma e quem é filmada demonstra a complexidade do que significa ser, simultaneamente, empregada e parte da família.

É notável uma evolução do olhar de Mascaro. A escolha do enquadramento dos jovens propicia uma observação familiar, próxima, dando um toque de sutileza às desigualdades mostradas. Por (felizmente) não empregar o tom da guerrilha, o diretor exige que o espectador encare as realidades do mundo com um olhar mais crítico, para que ele próprio enxergue as contradições que transparecem durante as gravações das rotinas.

Dessa vez, Mascaro também não uniformiza: no mesmo filme, temos uma jovem que se abaixa ao chão para filmar uma empregada varrendo embaixo do sofá, enquanto outro adolescente parece aprisionar sua doméstica na parede, numa entrevista acanhada que demarca o desconforto da situação. Temos patroas que falam mais que as próprias empregadas, mas também temos empregadas que aparecem sozinhas em cena — o momento em que Vanuza chora no carro ao ouvir uma música é, provavelmente, um dos mais singelos da narrativa. “Eu que sou a empregada, eu que tenho que aparecer”, brinca uma delas. Enquanto, para outra, a coisa interessante a se gravar é o hino de seu time, o Esporte Clube Bahia. Mais humilde, Mascaro abre espaço para todas essas situações e compõe um filme que não se organiza em um único discurso. Antes disso, abre caminho para várias direções e estabelece possíveis interpretações num emaranhado complexo de imagens. Fragmentos potencializados por aquele álbum de fotografias que, discretamente, passeia entre os registros da amizade infantil entre uma empregada e sua patroa, amarelados pela ação do tempo e pela relação de suas protagonistas.

Um documentário forte, mas que poderia ter sido mais potente. Por que não ceder às próprias empregadas as rédeas de sua própria enunciação? Se Mascaro quis dar o troco na elite brasileira ao debochar dela em suas próprias coberturas, por que não estender o aparato cinematográfico para que as domésticas filmem seus patrões? Seria uma guinada interessante, talvez mais do que Doméstica já é.

Assim como a representação, o cinema é político. E o filme fala por si enquanto filme. Terminar o Um Lugar ao Sol quebrando o pacto com o entrevistado, que pediu para encerrar sua contribuição na entrevista, pode ter sido um gesto de má fé. Mas confirmou o que o filme denotava durante toda a narrativa. Por sua vez, a fala final de Lucimar em Doméstica registra um pensamento que nenhuma empregada poderia ter. “Considero que tenho liberdade. Isso também eu gosto”, ela diz. Ora, para além de sua consideração, você deveria se sentir livre de qualquer forma, Lucimar. Uma pena que essa suposta liberdade não foi concedida a ela na realidade fílmica de alguém que se propôs a deslocar o olhar da representação.

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Gabriel Araújo
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Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.