Realidade e ficção no cinema oriental

Os filmes de Jia Zhangke e Hou Hsiao-Hsien

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
9 min readJun 30, 2017

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Cinema, destruição e memória em Fengjie

Para existir como imagem, o cinema se agarra ao real. Teóricos dessa arte inclusive referem-se às reflexões de André Bazin sobre a ontologia da imagem fotográfica para compor análises acerca do realismo que é identificado em alguns filmes.

Contudo, tal qual Bazin alerta, referindo-se à trajetória do cinema mundial, “não há um realismo, mas vários realismos. Cada período procura o seu, a técnica e a estética que capturará, reterá e melhor traduzirá o que se quer da realidade”. Nessa mesma perspectiva, Thomas Elsaesser, analisando os filmes emergentes da África, da América Latina e de algumas partes da Ásia, conceitua algumas tendências contemporâneas não-hollywoodianas como formas de retorno à estética realista; ao que ele exemplifica

“pelo engajamento quase-documental e etnográfico com os ritmos lentos do dia a dia, com as vidas de pessoas comuns, com o ambiente natural ameaçado de desaparecimento, com a desolação dos guetos e favelas urbanas, ou com o tédio e anomia das classes médias asiáticas emergentes”.

É a partir desse recorte que ouso um movimento de discussão sobre os filmes de Hou Hsiao-Hsien e Jia Zhangke, cineastas taiwanês e chinês, respectivamente. Não para rotulá-los sob um mesmo aspecto (a diversa filmografia de ambos nunca me permitiria), mas para encontrar traços semelhantes entre suas obras e identificar as relações que elas mantêm com o real.

Uma das muitas confraternizações barulhentas em “Adeus ao Sul” (1996), de Hou Hsiao-Hsien

Se não, como refletir sobre os olhares dos não-atores figurantes, que vez ou outra encaram disfarçadamente a objetiva como que desejando aparecer em tela e enviar sua mensagem? Como classificar as cenas decorrentes do fluxo cotidiano, onde uma câmera parece estar ligada sem forte propósito além daquele de capturar a própria mise-en-scène do dia-a-dia? Ou como elaborar sobre as conversas em torno de uma mesa, onde as vozes se sobrepõem umas às outras para gritar o incompreensível? Assistir aos filmes desses dois grandes cineastas é atentar para essas breves partículas do real encravadas numa ficção semiconstruída, que, por vez ou outra, se deixa afetar pela liberdade da filmagem e da narrativa.

Desse modo é construído Em busca da vida (Sanxia Haoren, Jia Zhangke, 2006), longa filmado entre a produção do documentário Dong (2006) nas ruínas de uma cidade que seria submersa pela barragem de Três Gargantas — hoje, a maior usina hidrelétrica do mundo. Além de filmar nas locações reais de Fengjie enquanto a realidade se impõe à própria narrativa, o diretor faz uso de longos planos sequência na documentação dessas situações. Para filmar uma cidade em constante demolição e contar a história de dois desencontros nesse cenário, Zhanke une atores e não-atores nesses espaços destruídos; trazendo o próprio martelar dos trabalhadores locais para misturá-los ao fluxo dos protagonistas na busca de seus desejos.

“Com o cinema, busco me ocupar das pessoas comuns. Devo então, antes de tudo, honrar a vida cotidiana, provar na lentidão do passar do tempo o cansaço das vidas banais”,

o diretor nos confidencia, ao passo que transmite esse cansaço de que fala para a imagem de seus filmes. O marasmo com que os trabalhadores derrubam Fengjie nos leva a compreender, nessa temporalidade estendida, a complexidade do cenário que abarca as duas buscas dos protagonistas — uma cidade milenar prestes a ser engolida, com a destruição das relações de memórias, tradições e afetos de toda uma comunidade.

Em busca da vida, Jia Zhang Ke, 2006

Porém, esse é o mesmo diretor que coloca um prédio decolando como um foguete e alguns óvnis em cena no filme citado. É também o mesmo que vai derrubar um avião aos olhos de Tao (Zhao Tao) em As Montanhas se Separam (Shan He Gu Ren, Jia Zhangke, 2015), e depois prosseguir o filme como se nada houvesse acontecido. Pois parece que, nesses mesmos momentos em que o diretor adentra a história que está sendo contada com respeito e intimidade à vida dos personagens reais que ali poderiam ter estado, Zhangke suspende a narrativa para categoricamente afirmar: “isso é só um filme”. E nós, embriagados na narrativa que se desenrola à nossa frente, decidimos contestar o diretor e enxergar no momento algo a mais.

Em As Montanhas se Separam, filme mais recente do cineasta chinês, acompanhamos a história de um épico em três momentos: a vida de Tao e das pessoas próximas a ela, nos anos de 1999, 2014 e 2025; e em dois níveis: o contraste numa China milenar, com suas tradições sendo postas em prova pelo avanço da economia de mercado na região. Contraste simbolizado tão perfeitamente na conversa entre Dollar (filho de Tao, sim, nomeado pelo pai com o nome da moeda norte-americana) e sua professora de mandarim:

Cena de “As Montanhas se Separam”, de 2015

– Qual é o seu nome em chinês? — Dollar (Dong Zijang) pergunta, ao passo que a professora, após um breve tempo de reflexão, responde, simplesmente:

– Eu não me lembro.

Diferentemente de Em Busca da Vida, Jia toma as rédeas de As montanhas se separam. Mesmo que o diretor assuma o tempo material de algumas cenas, aqui, a narrativa é linear e bem amarrada. Não exatamente em relações de causa e consequência — o que faz do filme um épico que pode mostrar a realidade de qualquer possível vida — mas em cenas que se encaminham em relação a algum objetivo e propósito narrativo. Ainda assim, a ficção é fluida, e o fluxo da narrativa segue sem que demos conta de seus cortes: passa de Tao e seu triângulo amoroso ao futuro câncer de Lianzi (Liang Jingdong), pretendente rejeitado pela protagonista; a um reencontro da mãe com o seu filho; e ao próprio protagonismo do filho ao final, preso no conflito entre a tradição de seu povo e a iminência de um futuro uniformizado.

Pensar em Zhangke é, portanto, segundo Chris Berry, pensar no diretor pioneiro do chamado estilo “realismo flagrante” do cinema independente chinês contemporâneo. Mas como o próprio autor ressalta, com exemplos que já elenquei acima, é pensar no “diretor de longas cujo caráter, mais acentuadamente, se distancia desse realismo”.

Para nos afastar um pouco mais desse realismo flagrante de Zhangke, proponho realizar uma viagem de 2103 km ao sudeste asiático para abarcar os filmes do cineasta taiwanês Hou Hsiao-Hsien em nosso debate. Considerado por muitos como um devedor do cinema de Ozu na contemporaneidade, Hou consegue transmitir com precisão a dimensão do cotidiano na macro história de seus personagens. Diferentemente do mestre japonês, adepto da câmera baixa e do plano fixo, o dia-a-dia nos filmes de Hou são construídos com o uso de planos-sequência, criados por situações de banalidade filmadas de maneira impressionante, e por movimentos de câmera que às vezes parecem enquadrar mais o que está fora do quadro do que o que está propriamente circunscrito.

Uma das mais belas cenas de “Adeus ao Sul” (1996), um plano-sequência que acompanha uma interminável viagem de motocicletas nas densas flores do sudeste asiático

Seu cinema pode ser compreendido segundo uma das cenas de seu filme Adeus ao Sul (Nan Guo Zai Jian, Nan Guo; Hou Hsiao-Hsien, 1996). Enquanto o gângster taiwanês, um dos protagonistas do filme, come no telhado de sua casa, um trem para logo abaixo no ponto em frente à sua residência. A câmera, despreocupada, desliza então no plano para enquadrar uma senhora que embarca no transporte com dificuldades, e volta sem nenhuma pretensão ao protagonista que ainda está comendo seu jantar. Com a metáfora, ouso afirmar que Hou constrói suas ficções baseados nesses momentos de fluidez de seus planos, permitindo que a realidade dessas situações de cotidiano reflita na criação dos filmes. Assim, seus personagens não vivem grandes histórias nem se tornam grandes exemplos, mas fazem parte de um contexto maior que lhes abarca. E nessa miudeza de sentido, eles engendram momentos de comicidade, de drama, de discórdia e de amizade, traduzindo “documentários do momento” em que vivem, como Gardnier propõe.

“A mistura do distanciamento e do plano-sequência cria um efeito de realidade absurdo”.

Para ir além da citação, podemos ainda comentar o modo como o ambiente urbano transparece em alguns filmes de Hou. Uma cena em específico é especialmente emblemática (visto que ainda noto nela uma leve semelhança com o encontro do protagonista com a sua esposa em Em Busca da Vida).

No alto de um edifício, enganados por um homem que lhes promete levar ao cinema e lhes rouba seu dinheiro, Os garotos de Fengkuei (Fenggui lai de ren, 1983) encaram no retângulo vazio de um prédio a cidade de Kaohsiung logo abaixo. Por um breve momento, a tela grande do cinema do prédio abandonado mostra a cidade em movimento.

Neste mesmo breve momento, o distanciamento permitido por Hou nesse filme nos permite inferir sobre a ação da cidade grande nesses garotos do interior, que, por sua vez, tentam conquistar a vida entre altas doses de molecagem e irresponsabilidades. Mas o diretor não está preocupado em uma evolução moral ou social dos protagonistas, pelo contrário; a singularidade e a beleza do filme estão justamente nas ações idiotas e irresponsáveis que eles praticam.

Afinal, quem é Hou para lhes julgar?

Os garotos de Fengkuei em ação

Já que estamos discorrendo sobre realismo e ficção em alguns exemplos pontuais no cinema asiático, ouso descrever uma cena em que Hou adota o “realismo flagrante” de Jia. Trata-se da cena final de Os garotos de Fengkuei, em que os jovens estão vendendo fitas no mercado da cidade. A cena praticamente decorre da suspensão narrativa, condensada tão bem pela junção do som dos gritos de um dos garotos e uma trilha sonora que evidencia o fim do longa. Em planos fixos, Hou registra cenas próprias do mercado. Arrisco dizer, cenas reais. Uma senhora sentada com seu chapéu, enquanto crianças brincam às suas costas. Outra mulher de óculos escuros, apalpando os potes que está vendendo. E o caos costumeiro das feiras de rua, lotadas de comércio, transeuntes e veículos. Uma verdadeira amostra do cotidiano capturada através do olhar de um diretor sensível às implicações da realidade.

Com essa reflexão, voltemos a Jia Zhangke. Mais especificamente, ao seu documentário Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi/ I Wish I Knew, Jia Zhangke, 2010), filme encomendado pela Exposição Mundial da cidade em 2010. O documentário conta uma história de Xangai a partir da memória de dezoito entrevistados, que discorrem sobre as diversas transformações que a cidade sofreu com revoluções, fluxos migratórios e uma recente abertura para a economia de mercado.

Já que o filme é construído a partir de entrevistas longas, com poucos cortes, é impossível evitar uma comparação com Dong: o diretor que fez aquele documentário sobre o pintor em Fengjie, revelando que pouco gosta de interferir na cena e fazer entrevistas, é o mesmo diretor que realiza esse documentário, onde tudo parece ser construído para fazer sentido? E perguntemos: por que logo o documentário, que pretende elaborar uma relação de decalque com o real, mais se parece com uma ficção no exemplo citado? E por que claras cenas de ficção, como a mulher vestida de branco perambulando nas ruas e escombros da cidade, dividem os depoimentos dos dezoito entrevistados que compartilham suas memórias?

A mulher que caminha entre os escombros é Zao Thao, musa do diretor

Uma possível resposta, talvez não tão clara, resume os próprios questionamentos que fiz ao longo do texto. A de que toda realidade, quando adaptada em algum meio que não ela própria, é construção — sem exatamente configurar o que chamamos de ficção, pura e simplesmente. Carolin Overhoff Ferreira é exemplar ao definir esse movimento no documentário de Jia: “é um filme indisciplinar”, a autora escreve, “que confia na capacidade do registro e da montagem de uma realidade heterogênea — da vida de uma cidade — em nos fazer sentir e pensar que o suposto consenso sobre sua História se baseia, na verdade, na construção de mentiras”.

O realismo que se encontra na película da imagem cinematográfica não é, portanto, nada além da realidade que o diretor, com seu olhar subjetivo, registra e enquadra. “É porque a criação não requer apenas imaginação. Ela também necessita do real”, Hou diz, em uma conversa com Jia. Para além de pressupostos ideológicos e problematizações éticas sobre a reconstrução do real, os filmes mencionados se tornam belos e poéticos por justamente misturarem realidade e ficção na formulação de um propósito — seja contrastar a China de suas tradições à China da atualidade, em muitos filmes de Zhangke; ou de respeitar a integralidade do cotidiano realista nas ficções de Hou. Esses passos de aproximação e distanciamento entre realidade e ficção são responsáveis por fazer poesia daquilo que os diretores acreditam, filmam e transmitem.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.