The Post: “zeitgeist”, feminismo e liberdade de imprensa

Caça ao fantasma… do tempo

Laura Batitucci
Fale de Cinema
7 min readJan 25, 2018

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Com “The Post — A Guerra Secreta”, Steven Spielberg volta às telas e volta também aos assuntos históricos. Contemplando o caso dos “Pentagon Papers”, que marcou o governo de Richard Nixon (1969–1974) nos Estados Unidos, o filme é um prato cheio para os amantes do jornalismo e de tramas que envolvem a profissão. Dois anos depois de “Spotlight — Segredos Revelados” ter feito uma carreira impressionante nas premiações, levando, em última instância, o Oscar de Melhor Filme, “The Post” reacende a chama da discussão sobre o papel da imprensa na sociedade.

O enredo é relativamente simples: Kay Graham (Meryl Streep) é dona do jornal Washington Post, que herdou do marido quando este morreu, se tornando, assim, a primeira mulher na chefia de um jornal nos Estados Unidos. Em meio à Guerra do Vietnã, que consumia a força jovem dos Estados Unidos em esforços fracassados de “descomunizar” o estado oriental, alguns estudos reveladores sobre as intenções dos governantes americanos através dos anos da guerra são trazidos à tona, e o Post, juntamente com outros jornais, como o New York Times, brigam contra o governo pelo direito de publicar esses estudos, que prejudicariam imensamente a gestão Nixon e a imagem pública das gestões anteriores. Nesse contexto, Kay entra frequentemente em embate ou em conciliação com o seu editor-chefe, Ben Bradlee (Tom Hanks), que busca unir toda a equipe da publicação em favor dessa investigação.

Spielberg, pra variar, navegou o barco desse enredo com maestria: pela capacidade de reunir um elenco incrível, não só com dois gigantes como Streep e Hanks, mas com nomes “menores” que estão despontando principalmente no universo da ficção seriada (como Carrie Coon, Bob Odenkirk, Jesse Plemons, Michael Stuhlbarg, David Cross e Alison Brie); pela maneira como o filme ganha dinamismo, mesmo com um assunto pouco “aventuresco”; pelo conhecimento perfeito dos momentos de pico de emoção dos personagens, que podem gerar picos de emoção na audiência (principalmente se apontados pela trilha de John Williams, que, quando trabalha com Spielberg, parece largar toda a sutileza, mas ainda assim entregar um resultado sensível).

Mas o que traz “The Post” a essa escalada de popularidade e chances de prêmio definitivamente é o momentum em que o filme surfa. É a capacidade de capturar o espírito do tempo, o zeitgeist. E isso foi feito não só em uma “frente”, mas duas: as reflexões sobre a liberdade de imprensa e seu papel, levantadas atualmente pela terrível fase governamental que os Estados Unidos enfrentam com seu… presidente… Donald Trump; e as reflexões sobre a liberdade da mulher e seu papel, levantadas, claro, pelas últimas ondas recrudescentes do movimento feminista.

quem critique e há quem ache natural que Spielberg tenha aproveitado (ou se aproveitado) das referidas cristas da onda. Isso se mostra um debate interessantíssimo, principalmente, porque toca nas funções da Arte num mundo extremamente polarizado, marcado por ondas que se levantam e se dissipam de forma rápida. Se a intenção de Spielberg era surfar nessas ondas, ele teve que suar pra realizar um filme rápido o suficiente, que saísse a tempo de pegar a janela de oportunidade ainda aberta; se não foi essa a intenção, é no mínimo com muita alegria que ele (e a produtora, e todos que vão ganhar dinheiro com o filme…) recebe as recentes polêmicas que ajudaram a alavancar sua obra.

Independente do nível de intencionalidade, o resultado final é que “The Post” apresenta uma atualidade única que se torna assustadora, visto que se trata de uma obra “de época”. Seu retrato de uma cruzada governamental (completamente injustificada constitucionalmente) contra jornalistas vê reflexos no comportamento atual de deslegitimação da mídia perpetrado por Trump e suas insistentes acusações de que tudo o que é dito contra ele seria fake news, notícias falsas. No filme, Nixon (materializado poucas vezes e de forma deveras plana, como um vilão-sombra filmado de fora da Casa Branca que fala ao telefone com voz ameaçadora) já tem uma certa indisposição com o Post, impedindo-os de cobrir o evento do casamento de sua filha, e essa indisposição cresce até se tornar uma declarada caçada a vários jornais e ao seu direito de livre publicação. Nesse aspecto, o filme, com o intuito de ressaltar a importância da liberdade de comunicação, acaba trazendo uma visão às vezes simplista do jornalista, cujo único objetivo seria mostrar a ó-tão-clara verdade ao povo, mesmo que a custo de sua carreira e de sua tranquilidade. De qualquer forma, quando o lado mais fraco da equação atual é, sim, o jornalista, esse tipo de narrativa talvez não faça mal, e seja realmente inspiradora para aqueles que desejam lutar por uma imprensa que, mesmo chacoalhada em sua coluna pela internet e outras vicissitudes de nosso século, ainda esteja ancorada nos velhos ideais de liberdade de informação.

Jornalistas com roupas em tom sépia e penteados armados reunidos em volta de máquinas de escrever já não são tão comuns, mas estariam suas essências preservadas?

Mas o mais interessante talvez seja como o filme guie a questão da mulher no ambiente de trabalho (no caso, no ambiente bastante masculino do jornalismo das décadas de 60 e 70). Kay é uma mulher que dirige um jornal quando nenhuma outra mulher o fazia. Kay não recebeu o jornal diretamente das mãos do pai, que, quando morreu, achou mais adequado passá-lo às mãos do genro do que às mãos da própria filha. Logo, Kay tem um milhão de motivos para se sentir extremamente insegura no que faz, tendo que enfrentar banqueiros pouco inclinados a investir num jornal dirigido por uma mulher, pecuinhas jornalísticas como a cobertura do casamento da filha de Nixon, salas cheias de homens brancos que a olham como se ela fosse um alienígena, entre outros problemas do gênero (e de gênero). Essa insegurança, misturada com uma certa tendência aos pequenos desastres cotidianos (como derrubar cadeiras), que parece ser de sua própria personalidade, é mostrada desde sua primeira aparição, quando acorda assustada em sua cama, envolta por livros, jornais e ainda usando óculos: ela dormira estudando os dados que deveria ser capaz de demonstrar numa reunião de negócios. Esse traço de fragilidade é importante para que ela se torne mais cativa ao espectador e não se mostre apenas como “a-mulher-forte-que-domina-tudo-com-mão-de-ferro”, estereótipo já desgastado por aqueles que contam histórias de revoluções protagonizadas por mulheres.

Atta girl!

Kay apanhou — metaforicamente — o suficiente do sistema machista onde está inserida para absorver inseguranças que não deveriam existir, mas ao mesmo tempo está tentando manter seu jornal e sua reputação. E o filme sabe disso e ressalta isso a todo o tempo, como na cena em que ela sobe as escadas da Bolsa de Valores e encontra mulheres confraternizando do lado de fora de uma sala, apenas para heroicamente passar por todas elas, acumulando olhares de admiração, enquanto entra na sala em que só existem homens. O interessante é que Spielberg — e os roteiristas, Liz Hannah e Josh Singer — priorizam nos mostrar a posição de Kay como pioneira entre as mulheres do que se ater à verossimilhança histórica, como em uma das cenas finais, em que, após o julgamento que decidirá se o Post teria ou não direito de publicar os documentos, ela sai e é recebida do lado de fora apenas por mulheres, que a olham com profunda veneração. Claro que não foi dessa forma que o evento histórico se deu: mas é muito mais impactante que vejamos a primeira editora de um jornal estadunidense criar inspiração em suas colegas de gênero.

Mesmo que haja pontos positivos nessas representações da liberdade de imprensa e do papel da mulher, há momentos em que o filme parece — como acontece com frequência na obra de Spielberg — adotar um tom condescendente demais com a história e a sociedade americana, exaltando seus valores e imaginando o indivíduo como responsável e capaz de lutar por eles. Em diversos momentos, há falas que obviamente não levam em conta a opressão histórica que alguns segmentos da imprensa americana sofrem, principalmente aqueles ligados à extrema esquerda ou à defesa de minorias — o personagem de Tom Hanks, por exemplo, solta que “até aquele momento da história dos Estados Unidos, o governo nunca tentou interferir na imprensa”, o que é uma mentira deslavada, visto que, uma década antes do período do filme, o macarthismo estava caçando “elementos” comunistas na imprensa e na indústria cultural. A narrativa de que instituições privadas ou indivíduos são capazes de superar essa tentativa de repressão por parte do Estado (na verdade, por parte de determinados governantes, que não estariam representando o verdadeiro ideal estadunidense) pode inspirar, mas também cria sujeitos pouco preocupados em observar tendências históricas e sistêmicas de controle da informação. Da mesma forma, a representação de Kay e de suas lutas ignora o lugar de privilégio que aquela mulher ainda ocupa — não é à toa que a primeira mulher a chefiar um jornal americano seja branca, rica e tenha herdado o cargo de sua família.

Mesmo assim, se hoje temos diversos exemplos de mulheres que se destacam no campo das comunicações e do jornalismo, isso se deve à luta de mulheres como Kay. Se hoje a imprensa tem um pouco mais de liberdade para atacar atitudes pouco louváveis de governantes, isso se deve a jornalistas como os do Post da década de 60. Logo, Spielberg tinha, e imagino que sabia que tinha, desde que pensou a produção desse roteiro, um enorme material em mãos. Coube a ele tocar o barco — e acho um pouco injusto mencionar oportunismo, nesse caso, já que toda a indústria cinematográfica se baseia em demanda. É muito mais difícil caçar os fantasmas políticos do nosso tempo e transformar em entretenimento que organiza essas ideias e nos põe em reflexão do que apenas regurgitar demandas dos consumidores por mais continuações, remakes e produtos que apenas reciclam velhas fórmulas.

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