de repente viramos desejantes insatisfeitas: o que rolou?

uma visão interessante pra tentar explicar a angústia causada pela liberdade sexual na dinâmica hétero

Dalila Coelho
falo de amor
7 min readAug 3, 2020

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marília mendonça bem disse que todo mundo vai sofrer

ah, a liberdade sexual. a tão sonhada e almejada promessa de que, livres de uma série de preceitos machistas, as mulheres estariam mais à vontade pra correr atrás do que realmente querem, sem se importar com as imposições de comportamentos recatados. mas uma vez “livres” e ativamente correndo atrás dos nossos desejos, nos deparamos com uma questão que nunca havíamos pensado que seria problema, e que é a causa de muita angústia em quem se propõe sem sincera e assumir as próprias vontades: a incógnita do desejo do outro. essa incógnita é responsável pelo mal estar que sentimos nas inúmeras vezes em que nos vemos diante do seguinte problema: “meu deus, eu só quero ficar com você e você adora demonstrar interesse em mim, qual é então a dificuldade em fazer isso acontecer???”

esse é um incômodo que me atravessa desde a adolescência, quando o namoradinho preferia dormir na casa de um amigo a dormir na minha; ao boy de outra cidade que, três dias depois de me ignorar quando eu estava na terra dele, vem me mandar mensagem falando que está com saudade, mesmo sabendo que eu já estava de volta a bh; e a tantos outros caras que demonstram tanto interesse online e que conversamos e nutrimos desejo um pelo outro, mas que na hora de botar em prática, dão perdido.

nisso eu fico pensando não na falta de interesse — porque nenhuma dessas histórias acabou ali, as pessoas continuaram marcando presença e demonstrando interesse depois — , mas na falta de desejo. será que há uma diferença entre os quereres? no primeiro caso, sei que o menino supunha que eu queria algo sério e por isso ele não queria dormir na minha casa, mas nos outros tantos casos eu fico realmente por entender o que que rola pros caras serem tão interessantes e interessados quando tá tudo só na ideação, mas a partir do momento em que eu sou mais incisiva com o meu querer, com o “tá, então vamo. quero te ver. vamos sair tal dia, vamos fazer alguma coisa essa semana”, eles tendem a dar pra trás. será que ao expor o que eu quero, eu estou querendo demais? ou é minha ansiedade falando mais alto? ou será que a internet matou o tesão? será que ficamos tão acostumados com as várias ofertas online e com as idealizações enquanto tá cada um em seu mundo, que partir para o presencial e lidar com a realidade nos exaspera? (digo isso pensando obviamente em um contexto pré-covid, mas fica a questão pra quando formos retomar o contato social e lidar com todas as possibilidades de encontros que alimentamos durante a quarentena)

enfim: o que rola pros caras serem tão reticentes diante do nosso desejo? é uma manutenção boba de poder, um querer controlar o rumo da relação? é um não saber o que fazer, não saber como ocupar esse lugar de quem lhe é revelado o desejo do outro? essa é uma questão que eu não consigo entender de verdade, porque as respostas que me dão são sempre evasivas. talvez porque eles também não saibam porque agem assim e ninguém gosta de se sentir pressionado. mas tem um livrinho da psicanalista maria rita kehl, chamado a mínima diferença: masculino e feminino na cultura, que me deu uma boa visão sobre isso, e vou dar uma resumida aqui pra vocês:

o falo…

a psicanálise explica a forma como se dá a relação homem-mulher através do falo, que é o símbolo de poder, objeto de desejo, e é erroneamente associado ao pênis, dando ao homem a ideia de poder da virilidade. em contraposição, a mulher assume o lugar da feminilidade de corpo-falo, objeto do desejo masculino.

“A virilidade não é menos um semblante do que a feminilidade, sabemos disso. ‘O homem faz semblante de ter o falo, já que ele tem o suporte imaginário, o pênis, e a mulher como não o tem é mais acessível a sê-lo’, escreve Elizabeth da Rocha Miranda, resumindo claramente a posição da teoria lacaniana sobre as sexuações. A equação imaginária pênis=falo, mantida pelo recalque desde o Édipo, possibilita a um homem acreditar na mascarada que representa; poderíamos pensar, a respeito dos processos de sexuação, que um homem é o primeiro a se iludir sobre o semblante da virilidade, condição fundamental para que ele seduza as mulheres. ‘A Queda Que as Mulheres Têm Pelos Tolos’ deve ser exatamente esta: só um tolo acredita sinceramente que seu órgão sexual seja o falo, mas sem esta crença tola nenhum homem está em posição de seduzir uma mulher insinuando: ‘eu tenho o que você quer.’ As mulheres, por sua vez, ‘mentem’ e sabem disto, ao fazer semblante de um corpo-falo na feminilidade.” (Maria Rita Kehl. A mínima diferença: Masculino e feminino na cultura. p. 74 e 75)

a virilidade depende, então, da passividade feminina: é preciso conservar uma distância entre masculino e feminino para que a dinâmica entre os gêneros se mantenha favorável aos homens. essa distância, porém, foi posta em cheque com a liberdade sexual feminina, provocando uma desterritorialização nas relações entre homens e mulheres. de repente, eles se sentiram despossados do poder do falo, ao serem transformados em objeto de desejo da outra.

… e o desejo

para explicar as mudanças que ocorreram na interação heterossexual nas últimas décadas, a autora remonta à segunda onda feminista, quando a demanda das mulheres por mais autonomia na vida pública e privada alterou a dinâmica dos papéis de gênero, já que mudanças como a popularização de métodos anticoncepcionais e a possibilidade de independência econômica diminuíram as diferenças sociais entre homens e mulheres. passou a ser possível para as mulheres ter uma liberdade sexual semelhante à masculina, uma vez que elas puderam se desvencilhar das amarras que as prendiam ao mundo doméstico. com isso, as mulheres conseguiram finalmente deixar de ocupar o lugar de passivas à escolha masculina e puderam tomar frente dos próprios desejos. porém, essa mudança afetou a virilidade original dos homens, ao colocá-los no no lugar de narcisos frígidos, alvos do querer feminino.

“Freud não podia prever que as Noras surgidas de sua escuta iriam se tornar sujeitas de sua sexualidade, perdendo com isso a posição narcisista de eternas desejadas, comprometidas com a indiferença e com a frigidez. Ao se lançar em iguais condições, em relação ao homem, na conquista de seu prazer sexual, a mulher também ficou sujeita a outra lei: a do desejo do outro. Lei que só faz sentido quando seu próprio desejo entra em cena (que me importa o desejo do outro diante do silêncio do meu?). Ficou também sujeita a competir com o homem num terreno que é tradicionalmente dele e assim — o que parece até hoje surpreender as mulheres — jogar o homem por sua vez na condição narcisista. Que a mulher lhe revele seu desejo, que ele experimente cada vez com mais frequência o lugar do desejado, que o preço do desejar venha sendo dividido entre homens e mulheres — são privilégios dos quais o homem ainda não terminou de gozar um tanto sadicamente, como se dissesse à companheira: ‘Você não queria? agora, toma!’, recusando a ela a antiga posição idealizada conferida pela tradição.” (Maria Rita Kehl. A mínima diferença: Masculino e feminino na cultura. p. 50 e 51)

passar a ter um papel ativo diante dos próprios desejos é também assumir a responsabilidade pelo que se deseja: nós ganhamos a possibilidade de escolhas, mas passamos também a ter que lidar com a recusa do outro, perdendo o posto narcisista de mero objeto e nos colocando no lugar de desejantes que tendem a nunca se satisfazer. ao adotar comportamentos semelhantes ao masculino, é como se virássemos um espelho para os homens, e essa identificação, além de não ser nada agradável, os coloca em um papel originalmente feminino. e é aí que se conserva o poder masculino na manutenção das diferenças: ao negar à mulher o reconhecimento amoroso que ela finalmente lhe revelou desejar, o homem volta a deter algum controle da situação e mantém a distância entre os gêneros.

em resposta à demanda de igualdade social, o comportamento masculino, mesmo que inconscientemente, visa manter uma distância suficiente para que ainda seja possível desejar as mulheres sem que a virilidade seja afetada. por mais que a gente se debruce em tentar entender o que o outro quer, a verdade é que não conseguimos lidar com o nosso próprio desejo — que o outro queira ocupar o lugar passivo do nosso objeto. por isso os homens agem de forma esquiva: para não encarar que, na verdade, o que as mulheres querem é o mesmo que eles — manejar o desejo do outro, e não ser manejadas.

isso não quer dizer que devemos mudar nossa forma de agir ou voltarmos a ser passivas diante dos nossos quereres. só quis apresentar uma visão que acho muito interessante, que me desvendou um pouco a angústia causada pela incógnita do outro. essa mudança no papel de passiva e ativo, desejante e desejado, deve perdurar e se tornar cada vez mais ampla nas relações. cabe a nós todas e todos sabermos lidar com essa dinâmica, sabermos ocupar os vários papéis nas interações do desejo.

e uma curiosidade: é daí que vem o nome falo de amor! dessa brincadeira de palavras entre o falo de falar e o falo fálico, que diz muito também do porquê eu defino minhas reflexões como sendo essencialmente heterossexuais: porque é desse lugar que eu falo, do lugar de quem foi construída tendo o amor ao homem como parte essencial da identidade. e por isso falo de amor: tanto estou falando sobre o sentimento, quanto o falo representa o objeto do meu amor, do meu desejo. e assim falamos do falo, afinal.

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Dalila Coelho
falo de amor

jornalista independente tentando registrar umas histórias