Brincantes sem fronteiras

Editor FC
Família Cristã
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7 min readJul 20, 2016

A Pedagogia da Emergência socorre a infância em situações limite.

Arquivo pessoal

Por: Sérgio Esteves

Ainda que os índices de mortalidade infantil no mundo mostrem contínua queda, a situação da infância nas regiões abatidas por guerras e tragédias naturais se apresenta como um desafio. Entre outras razões porque diante de tais eventos as estatísticas perdem sentido e surgem dramas pessoais. Como o da menina iraquiana de 7 anos que viu o pai ser decapitado por agentes do Estado Islâmico ou do garoto nepalês de 6 anos que foi acordado por um terremoto que transformou sua casa em um monturo de pedras, com sua mãe embaixo. Tratar essas feridas emocionais para as crianças não enlouquecerem exige uma primeira abordagem especializada, hoje chamada de Pedagogia da Emergência, método desenvolvido em 2006 pelo educador alemão Bernd Ruf e que já atendeu cerca de 80 mil crianças em todo o planeta através da organização não governamental Amigos da Arte de Educar, com sede em Stuttgart (Alemanha).

Em dez anos de trabalho, 344 voluntários do mundo todo, especializados nas técnicas criadas por Ruf, realizaram cerca de 50 intervenções em locais como Líbano (2006), China (2008), Cidade de Gaza e Indonésia (2009), Haiti (2010), Japão (2011) e Nepal (2015). Um desses voluntários é o terapeuta social e educador físico Reinaldo Nascimento, 37 anos (foto). Único brasileiro presente nessa iniciativa internacional, ele já atuou em nove intervenções e, por força das necessidades, “especializou-se” em crianças sírias recolhidas em campos de refugiados do Curdistão iraquiano, onde esteve por três vezes, e no Nepal, onde trabalhou em duas ocasiões. “Se o mundo não se preocupar em fazer algo pelas crianças traumatizadas o mais rápido possível, o único futuro que restará a elas, caso tenham algum, será o de fazerem com os outros o que o mundo fez com elas”, diz, na entrevista, Reinaldo.

FC — Como você tomou conhecimento da Pedagogia da Emergência e acabou se engajando?
Reinaldo Nascimento — Minha história com a Pedagogia da Emergência começou pela Favela Monte Azul, na Zona Sul paulistana, onde eu nasci. A associação comunitária local era fundada por uma alemã, e o projeto era muito bem resolvido. Muitos jovens alemães vinham aqui trabalhar como voluntários e, depois de certo tempo, quando eu já era adolescente, com 17, 18 anos, eu comecei a dar aulas de Português a eles. Um dia, uma moça alemã me perguntou se eu não queria ir para a Alemanha. Nunca havia pensado na possibilidade, mas acabei indo em 1998. Lá, morei em uma fazenda biodinâmica, que não usa agrotóxico, falando o básico do idioma e trabalhando com portadores de necessidades especiais. Os alemães me falavam que eu tinha o dom de trabalhar com eles, e eu fui aprendendo mais. Acabei me formando em Terapia Social na Alemanha e, quando voltei ao Brasil, me formei em Educação Física. A Pedagogia da Emergência só surgiria em 2006.

FC — Em que situação?
Reinaldo Nascimento — Quando a Alemanha sediou a Copa do Mundo de Futebol, o prefeito de Stuttgart convidou em 2006 jovens de todo o mundo para conhecer a cidade. Foram jovens de vários países, inclusive 15 do Líbano. Mas aí estourou a guerra entre o grupo Hezbollah, do Líbano, e Israel, e aqueles jovens libaneses, aliás portadores de necessidades especiais, não tinham como voltar para casa devido aos aeroportos e estradas destruídos. Houve grande tensão. Eles queriam voltar, os pais também queriam e todo mundo pressionando. Então Bernd Ruf, nosso professor da escola Waldorf, um método pedagógico criado pelo filósofo alemão Rudolf Steiner, que emprega o valor terapêutico do brincar e das artes, montou um grupo de voluntários para levar as crianças de volta a Beirute. Chegando lá, nos campos de refugiados, Ruf teve contato com os efeitos da guerra, viu crianças traumatizadas e doentes, e pensou em utilizar seus conhecimentos pedagógicos para melhorar aquela situação. Nasceu assim a Pedagogia da Emergência.

FC — Ser terapeuta social e educador físico favoreceu sua inserção como voluntário da Pedagogia da Emergência?
Reinaldo Nascimento — Sem dúvida, mas isso só acontecer em 2012, após um seminário da Associação Amigos da Arte de Educar realizado no Rio de Janeiro, onde eu fui o responsável pelas traduções. A partir daí nunca mais deixei de participar. Minha primeira atividade se deu no Quênia, em janeiro de 2012. Depois fui para as Filipinas, Líbano, Nepal, Gaza e Iraque. E sempre em situações difíceis. No Quênia, por exemplo, estivemos em um campo de refugiados criado para 30 mil pessoas onde hoje vivem mais de 170 mil. No Líbano, a causa da tragédia era a guerra da Síria. Nas Filipinas, o problema foram os tufões que vitimaram milhares de pessoas. No Iraque, para onde acabei indo mais vezes, trabalhei com crianças sírias refugiadas, em razão dos ataques promovidos pelo Estado Islâmico. No Nepal, um dos países mais pobres da Ásia, os terremotos de 2015 mataram mais de 4 mil pessoas.

FC — O que faz, efetivamente, a Pedagogia da Emergência?
Reinaldo Nascimento — Uma intervenção pedagógica de emergência procura ajudar a criança a superar seus traumas através de atividades de estabilização, criando uma atmosfera de grupo positiva. O que me faz ser um apaixonado por essa Pedagogia é sua simplicidade. Sou educador físico e posso usar muitas bolas para realizar atividades. Nós dispomos as crianças em círculos e promovemos atividades com canto, dança, brincadeira e jogos. Esse brincar e cantar não é necessariamente a coisa mais importante do mundo, mas com isso eu posso evitar que as crianças se mergulhem no estresse e adoeçam. Quando promovemos essas rodas de atividade a criança já têm que estar ligada no que acontece dentro dela e ao redor, saber quem está à direita e à esquerda, prestar atenção na música e em tudo mais. Para que as crianças se reorientem, nada melhor do que brincar.

FC — Em que situação vocês, normalmente, encontram as crianças nos campos de refugiados?
Reinaldo Nascimento — Cerca de 50% de todos os refugiados são crianças e adolescentes. Todas portam não apenas feridas físicas, mas feridas na alma, anímicas, que doem profundamente. Todos nós, quando presenciamos algo ruim, podemos ficar traumatizados, mas, se temos uma família, um grupo social ou comunidade que nos ampara, superamos. Agora, imagine uma criança que perdeu tudo, pais, família, casa, seu contexto, seu chão. Ali a coisa é mais difícil e por isso ela precisa de mais ajuda. Muitas crianças encontradas não sabem mais o que é cabeça, ombro, joelho e pé. Põem a mão na cabeça e dizem que a barriga está doendo, passam a mão na barriga e dizem que a cabeça está doendo. Elas precisam voltar a entender e dominar seus corpos.

FC — Que espécie de trauma é esse?
Reinaldo Nascimento — É um trauma que dividimos em quatro etapas. A primeira é a do choque, do evento em si: uma guerra, um tsunami, um terremoto. A criança mal sabe direito o que houve e por que foi arrancada do lar. Ela não dorme, tem olheiras, tremor e sua frio. Na segunda fase, a do pós-choque, aparecem outros sintomas. Ela não consegue se alimentar, perde o controle de funções do seu corpo, suja as roupas e grita muito. Quando consegue dormir um pouco, de tanto cansaço, tem pesadelos. Nessa fase, surgem as regressões: crianças de dez anos começam a chupar o dedo ou pedir colo. Na terceira fase, sintomas viram doença. Dor de cabeça vira enxaqueca, tristeza vira depressão e o medo se transforma em síndrome do pânico. Na quarta fase, a criança se torna antissocial e tem tendências suicidas. Testa seus limites se cortando. Não precisa ir ao Iraque para ver crianças e adolescentes desse jeito. As cracolândias e prisões brasileiras estão cheias delas. É quando a vítima se torna algoz. Já que ela foi violentada a vida inteira e os outros acharam isso normal, ela também passa a achar normal machucar os outros…

FC — A Pedagogia da Emergência consegue interromper esse ciclo?
Reinaldo Nascimento — Em duas semanas, o tempo médio em que nosso time permanece em um campo de refugiados, obtemos progressos. Uma forma de se avaliar a melhora é através das oficinas de pinturas e arte. No começo, muitas crianças se desenham sem as mãos porque não se sentem capazes de construir mais nada. Através das brincadeiras, no entanto, e dos trabalhos múltiplos que fazemos com tricô, crochê e outros trançados, elas aos poucos se reinserem no mundo e aprendem a se desenhar com mãos. Redescobrem que podem, de alguma forma, mudar o mundo. É um sinal de que conseguimos nosso objetivo: fazer a criança voltar a querer viver e a lutar pela vida. Esse trabalho, claro, precisa ter continuidade depois da nossa partida, e passa a ser realizado em parcerias estabelecidas com as escolas que seguem a Pedagogia Waldorf em mais de cem países.

FC — Você nasceu e cresceu em uma favela, mora no Jardim Ângela, na periferia de São Paulo (SP), e se lembrou das cracolândias brasileiras. Nunca ocorreu à organização não governamental Amigos da Arte de Educar fazer algo pelas crianças daqui?
Reinaldo Nascimento — Muitas vezes. Sou brasileiro e vou ao outro lado do mundo ajudar crianças traumatizadas enquanto a 40 minutos da minha casa existe uma cracolândia cheia de meninos-zumbi. Entre nós, o número de crianças e jovens violentados e abusados é uma enormidade. No estado de São Paulo, quem deveria proteger a infância está desviando dinheiro da merenda escolar. Poderíamos, sim, fazer muito aqui. A verdade, porém, é que os governos do País não ajudam, são ruins de parcerias e não assumem que a infância brasileira precisa de ajuda. Assim como precisa de escolas mais alegres, professores mais bem remunerados e motivados e, principalmente, de famílias mais atentas a seus filhos, tenham elas o formato que tiverem.

Reportagem publicada originalmente na Revista Família Cristã, edição de maio de 2016.

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