Crítica: Rara

Letícia Cozoli
Fanchas Filmes
Published in
5 min readSep 20, 2018

“Rara”, ou Estranha, em português, é um filme chileno de 2016 dirigido por Pepa San Martín. O longa é reconhecido internacionalmente, contando com o prêmio de Melhor Filme pelo Queer Lisboa — Festival Internacional de Cinema Queer. Apesar disso e mesmo com a grandiosidade de seu tema e de suas atuações, Rara ainda está longe de obter o reconhecimento que realmente merece, considerando que este geralmente é retido na bolha das grandes produtoras do cinema mundial.

O longa é baseado em uma história real contada sob o olhar de Sara, uma pré-adolescente que encara situações corriqueiras da juventude: o primeiro interesse amoroso, alguns problemas no colégio, discussões bobas com a irmã mais nova e pequenas rebeldias. Nenhuma de suas complicações tem relação com o fato de sua mãe ser divorciada e morar com a namorada, porém não é algo com que todos concordam.

O casalzão do nosso filme

Já no início, o filme mostra a cena de um desenho feito por Cata, irmã de Sara. Era uma representação de sua família: as duas mães e as duas filhas, juntas de um gatinho que havia sido encontrado há pouco. Por conta disso, Paula, a mãe das garotas, recebe um telefonema polêmico da escola de Cata, problematizando a “anormalidade” daquele desenho e sobre como ele teve repercussões negativas no colégio. “Cata, você não pode desenhar a mamãe e a Lia na escola, nem dizer para os seus colegas que você tem duas mães, isso não é legal” diz Sara à irmã que, com o olhar puro de uma criança, não consegue enxergar qual seria o grande problema em retratar ou falar sobre sua família, assim como todos os colegas fazem “o papai não gosta, e hoje ligaram do colégio e tudo mais” continua a mais velha quando Cata pergunta o porquê.

O grande problema, na verdade, é a ideia ultrapassada do que significa uma família. “Minha mãe diz que as filhas tinham que ficar com as mães, e minha avó diz que família é um homem e uma mulher, como escrito na Bíblia” relata a melhor amiga de Sara. Este segundo pensamento, infelizmente, ainda é muito comum nas sociedades latino-americanas, quando, na verdade, não existe um rótulo para o que significa família. Suas composições podem ser diversas, seja um homem e uma mulher, duas mulheres, dois homens, avós e netos, mãe solteira, pai solteiro… em resumo, não há limites para o amor. Mas o preconceito tenta limitá-lo.

Isso está diretamente relacionado com o quanto é importante incluir o assunto da diversidade nas escolas. Assim como a maioria, se não todas as instituições, a escola segue um padrão heteronormativo, onde é imposto que só existe uma sexualidade correta: a heterossexualidade. As histórias e problemáticas que envolvem relacionamentos tratam quase que exclusivamente sobre casais e famílias heterossexuais. Desta forma, qualquer outra organização que fuja disso é considerada estranha ou errada. Como no caso do desenho de Cata. Se os professores aproveitassem o espaço escolar para se conversar sobre diversidade, sobre sexualidade e sobre um conceito de família mais amplo, Cata poderia continuar falando sobre suas duas mães, e Sara se sentiria mais confortável e não concordaria em esconder sua realidade como se fosse algo que leva a um julgamento ruim.

Sara e Cata, as irmãzinhas mais fofas

No longa, ao invés de apoiar a situação, o representante da escola acaba reforçando o preconceito. Em torno da metade do filme, acontece uma conversa entre o diretor do colégio e Sara. Ele fala sobre as preocupações de Victor, o pai da garota, e questiona se o que está causando os problemas em sua vida é “a particularidade que tem sua família”. Assim como Victor — um homem hétero, branco e de classe média -, o diretor crê que o fato de Sara ter duas mães é a raiz de todas as suas infelicidades, e afirma que ela não precisa ter vergonha “de querer se mudar para um ambiente mais normal, como seus colegas”. Muito certa do que quer, sempre que é questionada sobre preferir se mudar para a casa de seu pai, Sara insiste que não, que está muito bem vivendo com sua mãe e Lia, e que não precisa de nenhum tipo de ajuda.

Em aspectos cinematográficos, Rara pode ser considerado um filme simples. Há poucas trocas de câmera e a produção não é nada mirabolante. Mas nada disso diminui a qualidade do longa em nenhuma forma e considero, ainda que tem o efeito reverso: a simplicidade nos torna mais próximas da história e das personagens, que conseguem nos cativar com pouco.

Já em questões de representatividade, Rara humilha qualquer romance mais conhecido pelo público, tendo as sutilezas e a naturalidade como pontos fortíssimos. Além de, é claro, abordar alguns assuntos muito importantes para a comunidade lésbica, em especial no quesito família.

E para ficar melhorar ainda mais, há também a representatividade por trás das câmeras. Pepa San Matín, diretora do filme, é assumidamente lésbica. Quando questionada sobre a existência de uma militância em seu filme durante uma entrevista para o site Programa Ibermedia, a diretora ressalta:

“Eu sou homossexual e faço cinema a partir da minha realidade. Isso é o que me interessa. Não sei se é uma reivindicação, porque meu filme não é panfletário. O que eu quero é ver outra perspectiva das coisas. Eu acredito que, no geral, as mulheres são muito julgadas. Inclusive por isso há tão poucas mulheres presentes nos festivais, como diretoras, como juradas”.

Então nada melhor do que nos dar mais visibilidade dentro do mundo cinematográfico do que assistindo um filme com temática lésbica dirigido por uma lésbica, certo?

Já está convencida de que o filme vale a pena? Então corre lá assistir! E não deixa de contar pra gente o que você achou. Uma ótima sessão!

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